O polêmico discurso de formatura

Fui orador da turma de formandos do ensino médio do CEFET-RS em 2002 (formatura no inverno de 2003). O discurso foi polêmico, é verdade, mas não “malvado”, impressão que pode ter sido deixada pelos comentários do post The time of my life (?), na última sexta-feira, aqui do blog. 😛 Agora vou exercer meu direito de resposta: a publicação (inédita!) do próprio discurso. Não há prova melhor de que o discurso não poderia ser mais bem-intencionado. Aliás, até ufanista ele foi… Bom, cada um pode tirar suas próprias conclusões! 🙂 Embora sugestões sejam um pouco tardias, comentários são bem-vindos!

Digníssimas autoridades, já saudadas,

Caros professores,

Prezados pais,

Estimados colegas,

Senhoras e Senhores,

Falar por todos é impossível; não pode um só em tão grande grupo de formandos dizer tudo o que todos gostariam de dizer neste momento a respeito de sua história no CEFET-RS, pois as experiências são, em geral, individuais. No entanto, vou discorrer sobre um sentimento que confere unidade a esse grupo diverso. Só posso fazê-lo a partir de minha perspectiva; peço, assim, que relevem minha parcialidade, tendo sempre em mente que não tenho intenção de ser senão minimamente isento.

O sentimento a que me refiro não é só a consciência comum que há em qualquer grupo que perdure por algum tempo; diz respeito a algo maior, que nos fez ingressar no CEFET-RS, perseverar até hoje, referir-nos tantas vezes ao CEFET-RS como a Escola.

Enquanto estudante de Ensino Fundamental, a Escola sempre fora a única opção de Ensino Médio em Pelotas: a Escola, e não uma qualquer. Tinha de ingressar no CEFET-RS: sem dúvida, o alvo dos aspirantes ao Ensino Médio ou Técnico. Muitos podem negá-lo; porém, arrisco afirmar que a maioria não nega de coração, mas só superficialmente, e pode até abdicar de estudar no CEFET-RS, mas não sem remorso. Isso tem a ver com o fato de a imagem da Escola estar acoplada, na mente das pessoas, a uma idéia de excelência absoluta.

Aos poucos, percebemos que essa excelência está desbotada. Que ninguém se iluda e pense que a Escola não tem problemas. Não houve faltas prolongadas de professores, mas não foram poucas, durante um mesmo ano, as trocas de professores, prejudicando o curso das aulas. Os recursos disponíveis nem sempre correspondiam às expectativas. Nem sempre tínhamos o estímulo de que precisávamos para estudar. Apareceram professores não muito qualificados, bem como professores excelentes, mas desmotivados, desiludidos e sem perspectivas de carreira, terminado o seu contrato de trabalho no CEFET-RS. Tudo isso teve reflexos negativos no ensino.

Nem sempre a Escola trouxe à tona o melhor de nós; não raras vezes trouxe angústia em relação ao futuro. Sem dúvida, o mais enervante e angustiante carro-chefe das incertezas foram paralisações e greves, em que fomos privados do calendário escolar regular e da conclusão do curso em tempo igualmente regular, que tanto desejávamos e merecíamos. Sempre estivemos com os grevistas no objetivo muito justo e legítimo de lutar por aquilo que lhes é de direito, ou seja, uma carreira digna e uma remuneração condizente com a importância social da atividade que desempenham. Contudo, discordamos, muitas vezes, da maneira (de certo modo destrutiva e até auto-destrutiva) como lutaram por isso. O resultado dessas paralisações, danosas a todos os envolvidos, já é conhecido: a situação pouco muda para o servidor público federal, e o que se decide, teoricamente, em favor dele acaba convertendo-se, na realidade, em mais um pesadelo, como os últimos aumentos ultrajantes concedidos aos servidores. Diante disso, a posição de compromisso e solidariedade dos alunos, não para com as greves, mas para com as causas que as motivam, deve ficar sempre evidente.

Os problemas, no entanto, não foram maiores que nossa vontade de estudar na Escola, adorada pela comunidade por várias gerações. Prova óbvia dessa superação é este teatro repleto de estudantes. Note-se que muitos, por vontade ou não, ficaram pelo caminho: uns foram para colégios particulares, supondo encontrar lá melhor ensino (em geral, com pouco sucesso); outros não conseguiram vencer alguns desafios, mas estarão aqui em breve; há terceiros que desistiram da Escola para, evitando greves, passar mais rapidamente à universidade. Quase fui um destes últimos. Temia que, uma vez aprovado no vestibular, meu acesso à universidade fosse dificultado por não ter concluído o Ensino Médio – como de fato aconteceu comigo e com tantos outros. Por que não jogar tudo para o alto e efetuar transferência para outra escola? A resposta é oca: outra escola não é a Escola. Revelar essa misteriosa força de atração é meu motivo de estar aqui, neste instante. E, para chegar à conclusão, é bom rememorar.

O CEFET-RS, com genuínas personalidades, é um lugar onde cabe um mundo de diversidade. Poderia ter enriquecido minha vivência, participando dos grupos de jovens reacionários e politicamente engajados. Embora tenha jogado basquete, poderia ter aprendido mais com os esportistas e atletas da Escola, que fazem do esporte um exercício mais que físico, mas também de humanidade e convivência. Deixando de ser tão pacato, também poderia ter aproveitado as lições de vida divertida com os que estavam sempre em festa e que às vezes apareciam sonolentos em aula. Poderia, ainda, ter participado mais do grupo cristão, que se reunia para cantar e estudar a Bíblia nos intervalos, curtos e apertados entre as sirenes que não raras vezes nos sobressaltavam… Mesmo tendo participado do coro da Escola, enquanto houve, poderia ter tido mais experiências musicais no CEFET-RS. Fiquei por muitas vezes em dívida com o ritual sagrado dos intervalos, a saber, a tradicional reunião na cantina: todos estavam lá, mesmo quando não podia entrar nem sair ninguém. Poderia ter aprendido, no CTG Carreteiros do Sul, a apreciar mais as tradições gaúchas – no fim das contas, tomei pouco chimarrão, e só quando algum colega levava e era permitido, naturalmente. Muitos encontraram na Escola seu high school sweetheart, seus amores do colegial, e, sob os olhos atentos e por vezes demasiadamente críticos dos inspetores, descobriram os lábios de seus amores… Comigo isso não aconteceu: não encontrei a minha amada… Mas é verdade que conquistei amigos e amigas fiéis; conheci pessoas de quem dependi, em momentos felizes e tristes, e que dependeram de mim; fiz amizades verdadeiras que não se dissolverão com esta formatura. Por outro lado, sei que há quem me tenha inimizade e até repúdio, embora não tenha cultivado nada disso. Lamento e gostaria de poder consertar tudo, para só ter e deixar boas lembranças. E sequer citei as aulas, a experiência principal no CEFET-RS (pelo menos é o que se pretende). Acertando e errando, aprendi muito com professores; uns, grandes e memoráveis; outros, nem tanto, mas também dignos de estima. Tornei-me amigo de alguns, que me serão eternos mestres. Aprendi a suportar uns poucos, quando sua matéria ou seu modo de ser não me agradavam, consciente de que nem por isso podia prescindir de suas aulas para completar minha formação. A ambivalente teimosia fez com que reafirmasse minhas certezas e com que reincidisse em erros em vez de ouvir o mais experiente.

Por três anos (e meio), escrevi, calculei, pensei, entendi, expliquei; mais que este, menos que aquele; na média, tanto quanto cada um dos colegas. E, ainda assim, deixei de fazer muito do que poderia ter feito, como estudante do CEFET-RS. Poderia repetir toda a experiência, para aproveitá-la melhor. É fato que, algumas vezes, o tecnicismo reinante na Escola serviu de barreira intelectual a mim e a colegas que cursaram só o Ensino Médio. Em verdade, talvez a Escola fosse o lugar errado para nós que descobrimos não ter a ver com números, fórmulas, processos e resultados de alta precisão. Contudo, o ambiente do CEFET-RS não nos sufocou. Pelo contrário: mais uma vez, a idéia de excelência nos manteve firmes, quando o descontentamento e as frustrações nos empurravam impetuosamente para fora da Escola.

Não podemos determinar com precisão a importância da Escola na modelagem de nossa personalidade e no desenvolvimento de nossos talentos. Da mesma forma, nunca saberemos se fizemos a escolha certa – nem mesmo depois de termos de fato estudado no CEFET-RS –, pela simples razão de não podermos voltar atrás e escolher novos rumos. Fato é que não há arrependimentos. Ingressamos sob o alucinante efeito da idéia de excelência absoluta; aos poucos, porém, aprendemos que a Escola não é a opção, mas a melhor opção. A idéia de excelência, mesmo relativizada, continuou a existir, pois a lei da atração exercida pelo CEFET-RS lhe é intrínseca, não pode ser dele isolada. A Escola é especial porque as pessoas que nela estão são especiais – e mais relevantes que os problemas. E essas pessoas são especiais porque as que houve antes delas também o foram – e assim por diante. A sensação de que a Escola é a melhor escolha que poderíamos ter tomado está difusa e muito alicerçada, tanto que, apesar dos períodos de tensão, incerteza e inquietação enfrentados por nós no CEFET-RS, persistimos e superamos as dificuldades. Parece até que essa idéia de excelência acerca da Escola nos vem pronta, por herança. Mas temos de admitir que gerações de ex-alunos que hoje vivem felizes e bem-sucedidos não são uma ilusão coletiva… Caminhos de conquistas foram traçados por ex-alunos da Escola de Artes e Ofícios, da Escola Técnica de Pelotas, da Escola Técnica Federal de Pelotas, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Pelotas, nos últimos 60 anos. Se a sua felicidade e o seu sucesso dependeram, de fato, da sua passagem por esta instituição, isso é um eterno mistério; mas essas pessoas existem, são realidade empiricamente verificável.

Em linhas gerais, fomos felizes ao estudar no CEFET-RS. O sentimento comum que compartilho com os colegas é a esperança de desfrutar de felicidade e de concretizar em nós o ideal de excelência pelo qual o CEFET-RS, como supomos, é responsável. E está aí, de certa forma, a força de atração que nos manteve na Escola até o final, e que nos afasta de arrependimentos, e que nos faz insanos ao ponto de dizer que repetiríamos tudo. Essa força tem origem na tradição; é hoje porque ontem foi; será amanhã porque hoje é. Só o que temos de esperar, a partir de agora, caros colegas, é que, com a graça do Eterno Pai, a história feliz e bem-sucedida daqueles que passaram ontem pelo CEFET-RS continue hoje e amanhã, por meio de nós.

Parabéns a todos nós e muito obrigado.

4 ideias sobre “O polêmico discurso de formatura

  1. Angélica

    Lendo esse texto, conseguih me lembrah d td q aconteceu naquele dia tão maravilhoso e, ao mesmo tempo, triste, pra mim :~~Me deu um friozinho na barriga d pensah q mês q vem estarei passando por isso novamente (to terminando o ens. Técnico). Depois de 6 anos, não consigo me imaginar fora do CEFET ;~~~obrigada por publicar.abraço!

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  2. Flávia

    iaii martin!! achei mto interessante esse discurso!infelizmente a realidade de quase todo ensino público não é satisfatória né.. :(bjss

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  3. Anonymous

    Muito bom o teu discurso. Analisaste bem os aspectos que envolveram tua passagem pelo Cefet, enaltecendo o que foi positivo e criticando conceitos e atitudes que necessitam de reformulação.Parabéns! Tens de fato o domínio da palavra e certamente tua carreira será brilhante.Deus te abençoe!

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