Reflexões de um estrangeiro

Foi tal a freqüência de eventos sinistros, tristes ou difíceis (ou tudo isso ao mesmo tempo!) nos últimos dias que acabei relaxando na postagem. Acho que tudo começou com o acidente no sábado passado, mas continuou durante a semana passada com o suor para a finalização do meu paper (sim: mandei o último rascunho para a SUPERvisora na sexta-feira e agora só estou à espera dos comentários!). Vejamos se consigo pôr a postagem e as notícias em dia.

No domingo visitei com minha irmã e meu cunhado o campo de concentração de Dachau, que foi o primeiro a ser construído no regime nazista e persistiu até o fim da Segunda Guerra. Claro que não dá pra dizer que esse tipo de visita seja “legal”, mas é sem dúvida interessante, algo que todo o mundo deveria fazer (talvez só) uma vez. Tirei apenas quatro fotos. Não vale a pena postá-las aqui: o que vale, mesmo, é a mensagem. Numa parte do memorial, diz, em francês, inglês, alemão e russo: Que o exemplo daqueles que foram exterminados aqui entre 1933 e 1945 porque resistiram ao nazismo ajude a unir os vivos pela defesa da paz e da liberdade, em respeito pelo ser humano (tradução minha). Noutra parte diz simplesmente: Nunca mais (tradução minha), em hebraico, francês, inglês, alemão e russo. Claro que uma visita assim só podia me deixar pensativo…

Na segunda-feira, indo de bonde (Straßenbahn) do centro de Bonn para (a gloriosa) Kessenich, conversava com minha irmã pelo celular. No mesmo vagão, uns guris estavam brincando uns com os outros, mas naquelas brincadeiras meio violentas, que não dá pra saber direito se é carinho ou se é porrada. Se me lembro bem, a Ca me disse para ficar um pouco quieto no telefone, porque poderiam inventar de me incomodar. Eu achava que não tinha problema, porque eles estavam no lado oposto do trem.

Porém, depois que desceram, umas duas paradas antes da minha, e antes do bonde voltar a andar, um deles bateu com tudo no vidro da janela, bem onde eu estava sentado. E quando eu digo “bateu com tudo” quero dizer: com vontade de botar pra quebrar, mesmo. Engoli em seco e me concentrei em ficar na minha; não queria parecer assustado nem mudar de lugar, porque devia ser bem isso que eles queriam. Disfarcei o susto (estou bastante seguro de que consegui!) e segui conversando normalmente ao telefone. Em segundos, o trem fechou a porta e começou a se mover… e o cara veio de novo bater com tudo na janela do trem, bem onde eu estava!

Pelo telefone contei pra minha irmã o que tinha acontecido e brinquei que, a rigor, com essa cara de alemão que eu tenho, eu não deveria ter problemas com neonazis. Só com a resposta dela é que fui me dar conta: posso até ser “imune”… mas só enquanto não abro a boca e falo português!

Na noite do dia seguinte, terça-feira, fiquei trabalhando até mais tarde no Secretariado, e antes de sair troquei umas palavras com uma assistente administrativa do Legal Affairs, a única que também ainda estava por lá. Contei sobre o incidente da véspera e ela, que também é estrangeira (filipina), me disse que alguns bairros da cidade são desaconselhados para estrangeiros, por causa da xenofobia de alguns moradores locais. Disse também que uma vez gritaram para um conhecido dela algo em alemão do tipo: “volta pra casa!” (querendo dizer: pro teu país de origem).

Com duas amigas estagiárias, fui ao Langer Eugen na quarta-feira para uma sessão de cinema restrita para funcionários da ONU. (“Sessão de cinema”, aqui, quer dizer projeção de DVD em um datashow! 😉 Mesmo assim, não se pode reclamar: a imagem e o som estavam excelentes!) O filme? Hotel Ruanda. E aí está, mais uma das minhas recomendações de cinema! Sei, mais um filme-de-catálogo, mas muito boa sugestão pra quem ainda não viu! Minhas duas amigas saíram chorando e, pra ser bem sincero, eu também estava quase lá! O filme é bastante pesado, triste, emocionante, e talvez ainda assim “adocicado” perto dos horrores que na realidade devem ter acontecido. E pensar que tudo ocorreu por causa de um ódio entre grupos étnicos inventados, cujas diferenças existiam apenas na sua imaginação, que nutria preconceitos infundados…

Finalmente, no sábado fomos a Berlim. O postálbum, incluindo o relato dos passeios tão interessantes que fizemos e até de um agradável reencontro de amigos, vai ficar para outra hora; por enquanto, só consigo pensar em algumas coisas que me entristeceram. Fiquei negativamente supreso com a quantidade de “gente estranha”, perdida na vida, que vi pelas ruas. Às vezes tinha a impressão de que nem estava na Alemanha. Foi a primeira vez que me senti verdadeiramente inseguro desde que estou por aqui. Na noite de sábado, a Ca ainda me contou que, anos atrás, soube de um estudante brasileiro que apanhou por um grupo de jovens furiosos por não saber falar alemão (direito). Aliás, bem no início do passeio, já no trajeto do aeroporto para o hotel, nazivandalismo no trem: quatro pequenas suásticas desenhadas num dos bancos. Minha irmã me disse que, para não ter qualquer problema, seria melhor não publicar a foto no blog enquanto estou na Alemanha.

Posso até não publicar foto nenhuma; aliás, acho nem depois de voltar ao Brasil. O que não consigo é esconder minha inquietação e deixar de expressá-la aqui, por meio de palavras. Eu simplesmente não entendo. Num um povo que já passou por uma história tão triste e que vive diariamente em meio a memoriais erguidos em homenagem a todos os que foram exterminados… A cidade de Berlim, por exemplo, é um grande monumento, e parece impossível que alguém, morando lá ou tendo ido pelo menos alguma vez para lá, seja capaz de esquecer-se das atrocidades do nefasto nacional-socialismo. Como pode que, nesse ambiente, alguns (ainda) não tenham aprendido a lição?

Ao escrever este post, tenho a especial preocupação de ser justo e de não deixar margem para que me entendam mal. Há tanta gente neste país que é “do bem” (a começar em grande estilo pelo meu cunhado) e que por isso não merece que essa gente “do mal” faça com que gente estrangeira como eu construa uma imagem negativa da Alemanha e um conceito perverso dos alemães. Enfim: o mal existe e temos de aprender a conviver com ele, mas isso de forma alguma significa aceitá-lo! O segredo (ou parte importante dele) veio no meu devocional da quarta-feira passada, que me surpreendeu com uma lição que não posso deixar de repassar aqui; um consolo que é ao mesmo tempo um desafio:

É no fogo dos insultos, grosseiros ou refinados, que o cristão se vai definindo, que ele vai sendo trabalhado e lapidado. Se ele retribuir na mesma moeda – dente por dente, e olho por olho – deixa de ser uma testemunha de Jesus. Antes deverá aprender a reagir como uma laranjeira carregada de frutas: ela responde com saborosas laranjas aos que atiram paus e pedras. Não é nenhuma reação natural de nossa parte. É a graça de Deus que nos capacita a amar até os que nos odeiam. (Orando em Família, 2008, p. 83)

4 ideias sobre “Reflexões de um estrangeiro

  1. Fabiane

    Nossa, Martin! Que forte tudo isso. Como é possível?? Fiquei impressionada com o que contaste. E muito oportuna a citação do Orando em Família. Bj

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  2. Anonymous

    oi, Martin!depois de ler tudo isso lembrei daquela frase “a grama do vizinho sempre parece ser mais verde”. falo isso pq não imaginava q poderia acontecer isso td na Alemanha… é uma pena :/ espero q continues tomando cuidado e sendo paciente pra não se meter em confusão. :Pgostei do comentário da Sandrine! hehehehabraço e uma ótima páscoa!ah!!! os cultos aí na Alemanha tbm são de madrugada (6h) e tbm escondem as cestas de páscoa pras crianças?? heheheAngélica

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