Doar sangue faz bem, dizem. Pouco importa: dôo do meu sangue não pelo bem que eventualmente isso me faça, mas pelo bem que proporciona ao anônimo donatário. Meu sangue é tipo O+, podendo em tese ser aproveitado por todos os que têm fator Rh positivo – ou seja, é bastante útil. Para mim, essa é uma das provas de que ações totalmente motivadas pelo altruísmo existem, sim, ao contrário do que se afirma por aí.
Alguém poderia contra-argumentar que, doando sangue com a consciência de que faço bem e de que sou útil a outrem, faço bem a mim mesmo. E, se minha ação é motivada por um benefício próprio, não há nela altruísmo puro. Desse modo, pelo menos de forma mediata, não haveria como fugir do egoísmo – mesmo no caso da doação de sangue.
Mas então eu replicaria (isso está parecendo até diálogo de Platão) que muitas são as desvantagens da doação de sangue. Já passei por experiências bastante desagradáveis (traumáticas, talvez) e, apesar disso, persisto como doador.
A primeira delas foi quando a enfermeira não conseguiu achar minha veia. (E não quero ressaltar a incompetência da profissional, mas quem me conhece sabe que eu sou todo veia…) Então ela tentou, tentou e tentou no braço esquerdo – e nada. Aí foi para o braço direito e conseguiu direto. E disse: “na próxima vez que doares, diz que a tua ‘veia boa’ é a do braço direito”. E eu pensei: “bobagem”. Eu já tinha tirado sangue do braço esquerdo – prefiro, já que sou destro – e não fora nada difícil achar minha veia.
O problema, na verdade, nem foi esse. O problema foi que todas essas tentativas me deixaram com hematomas enormes – nos dois braços. O do braço direito tinha, sem exagero, uns dez centímetros. Um horror. Até que não doía muito. Incomodava apenas o fato de que na academia deviam pensar (por um mês, até que desaparecesse o roxão) que eu fosse drogadito – daqueles que não vivem longe de uma seringa.
O segundo e ainda mais vergonhoso incidente foi em uma daquelas entrevistas de praxe, feitas antes da doação. Não me importo com as perguntas pessoais. Afinal, é preciso saber se o potencial doador se inclui ou não nos comportamentos de risco, como usuários de drogas, homossexuais, heterossexuais de vida sexual muito ativa (eufemismo para “pessoas promíscuas”) etc.
Não, eu não sou nada disso. O que me irrita são os questionários mal-elaborados. “Você tem parceira sexual fixa?”. Ora, se eu dissesse que não, além de ficar chato (a entrevistadora tinha visto minha então namorada na sala de espera), não ficaria verdadeiro o questionário, porque nunca tive vida sexual ativa (eufemismo para uma palavra bem piegas que não me digno a publicar). E se dissesse que sim, estaria admitindo ter uma vida sexual ativa que não tenho, e a resposta ficaria igualmente problemática.
O que eu fiz foi dizer nem sim nem não, mas simplesmente: “sou virgem”. (Pronto, tive de publicar a palavra piegas aquela.) Para o meu espanto, a entrevistadora perguntou: “tudo bem, mas você tem ou não tem parceira sexual fixa?”. Pára o mundo que eu quero descer! Pombas, já estava totalmente vermelho – e a mulher não ajudava! Ora, se sou virgem, não tenho parceira sexual fixa – mas dizer isso talvez me desqualificasse, digo, desqualificasse o meu sangue, porque eu poderia ser tido como “promíscuo” (chega de eufemismos!). Então eu fui disse: “olha, se eu não tenho relações sexuais, acho até que dá pra dizer que tenho parceira fixa, né?”. E pensei: “sim, parceira fixa: ninguém”.
Outra situação desagradável aconteceu recentemente. Na mesma (maldita) entrevista de praxe, a entrevistadora perguntou se eu tinha estado recentemente no exterior. Sim, eu tinha estado no Canadá, e por causa de vaca louca, gripe aviária e não-sei-mais-o-quê deveria esperar três meses para poder doar sangue. Não adiantou dizer que eu nem sequer cheguei perto de uma fazenda no Canadá. Tampouco adiantou dizer que eu sou vegetariano… Voltei pra casa com o mesmo sangue (?) com que tinha entrado no hospital.
Nada disso foi suficiente para me fazer desistir e, no início desta semana, com todo o frio que fazia (e aquela seringa gelada!), doei sangue.
Quem se atreve a dizer que doar sangue não é uma atitude puramente altruísta?
Cada uma que a gente tem de passar para poder auxiliar…! Sou cadastrado em um grupo de doadores de Sapucaia do Sul (eles buscam e trazem os doadores em casa ou no trabalho, que são convidados quando se faz necessário) e, numa das vezes, diverti-me com a colocação de um dos profissionais de saúde do Hemocentro de Porto Alegre: ao sentar na cadeira, um enfermeiro, de ascendência notoriamente africana, disse “se enxergares tudo preto, tenha certeza que não há nada de anormal”. Perguntei-lhe o motivo, que de pronto me foi respondido: os cinco enfermeiros da sala eram negros! Hehehe!Aprendi com meu pai a doar sangue. Foi uma das primeiras coisas que fiz após completar 18 anos (no mesmo dia em que abri minha conta no banco). E, Martin, estou plenamente de acordo de que a doação é um ato de todo altruísta. Nada mais me impele que não seja a possibilidade de poder auxiliar outra pessoa. E sabe qual é minha sensação ao final? De que sou cidadão, de que faço parte da pólis (falando em socráticos…!) e de que é necessário, à manutenção da ordem social, que neguemos as individualidades em favor do bem comum. Isto posto, SIM à doação de sangue!PS.: por favor, não considerem como racismo!
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Mas, a rigor, o indivíduo doa sangue porque ELE tem satisfação (prazer) em ajudar os outros… tá, brincadeira, o que importa nessa história é que tem gente consciente que doa. Muito bom o post, Martin!
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Obrigado! 🙂 Eu já previa que alguém ia defender esse contra-argumento, até por isso já o tinha incluído no segundo parágrafo! 😉
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