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95.000 quilômetros

Há exatamente um ano (02/02/2014) eu publicava a distância que havia percorrido em viagens no ano anterior (2013): 100.000 quilômetros. Embora nunca antes tivesse feito esse cálculo, posso dizer com segurança que nunca tinha viajado tanto num mesmo ano. Também pudera: em 2013 eu fui do Brasil para a Ásia, a Europa e a América do Norte em ocasiões diferentes.

Bobeira não ter guardado a memória de cálculo; hoje quis conferi-la. Terminei 2013 em Seattle; no início de 2014, ainda fui de lá para Nova York e, de lá, de volta para Porto Alegre. Não me lembro se incluí essas viagens no cálculo de 2013 (porque, afinal, foram as paradas finais de uma viagem iniciada em 2013) ou se não as incluí (porque, afinal, ocorreram em 2014).

Hoje resolvi repetir o exercício para 2014. Para evitar dupla contagem, não contabilizei as viagens de janeiro de 2014 (Seattle–Nova York–Porto Alegre). Nem esperava chegar perto da marca anterior (porque em 2014 não fui à Ásia), mas não é que foi por pouco? 95.000 quilômetros. Não foram 2,5 voltas ao mundo. Foram 2,37 voltas.

Unisphere

Minha foto da Unisphere (altura de 12 andares e 300 toneladas de aço), no Flushing Meadows-Corona Park, NYC

No último post comentei que viajei um tanto e citei alguns locais visitados. Por lapso, deixei de citar alguns (*). Aí vai a lista completa (inclusive com as viagens de janeiro de 2014), com links para posts, quando houver. À medida que for escrevendo posts e publicando fotos referentes aos itens sem link, volto aqui e incluo o link. Ou seja, tenho assunto para todo o ano de 2015. 😀

Muitos dos destinos (Buenos Aires, Genebra, Montreux e Santo Domingo) foram a trabalho. O que não quer dizer que só trabalhei. O que não quer dizer que matei trabalho para passear!

Assim como em 2013, trabalhei bastante em 2014, mas no cotidiano percorri uma distância bem menor de casa ao trabalho: uns 1.200 quilômetros dentro de Porto Alegre, porque em maio comecei a trabalhar de casa. Claro, considerando as viagens de longa a distância, eu percorri uns 70.000 quilômetros a trabalho…

Cada vez faz menos sentido ter um carro, mas ainda não foi em 2014 que vendi o meu. Não me perguntem por quê. (Um belo dia surge um post-classificados: BARBADA VENDO FIESTA 2008.)

Há um ano eu estava feliz de ter voltado em 2013 a cantar num coro, o Grupo Cantabile. Ironicamente, agora estou triste de tê-lo abandonado em 2014. Achei (e ainda acho) complicado conciliar o nomadismo com os compromissos semanais (ensaios) e eventuais (apresentações).

Há um ano estava superfeliz de ter crescido profissionalmente e ido de um emprego muito bom a outro com potencial ainda maior em 2013. Curiosamente, agora posso dizer exatamente o mesmo sobre 2014. Enfim estou trabalhando com Direito Internacional! Para o ano que vem, espero continuar crescendo, claro, mas sem tantas reviravoltas…

Tudo isso foi importante para mim e me faz concluir que, embora ainda precise fazer alguns autoajustes, estou mais próximo do balanço positivo que costumava manter e que perdi em algum momento nos últimos anos. Perceber o quanto viajei no último ano foi a cereja que faltava no bolo.

O triste é que o parágrafo anterior é uma cópia do que escrevi há um ano. Ou não é triste? Ou é normal e devo me conformar em ser sempre incompleto?

100.000 quilômetros

Foram 100.000 quilômetros percorridos ao longo do último ano. Se em vez de pipocar de um lado para outro até chegar a tanto eu tivesse percorrido essa distância em linha reta, poderia ter dado a volta ao mundo. Duas vezes e meia.

Comecei 2013 indo a Mumbai para o casamento de uma amiga (relato exaustivo aqui).
Terminei 2013 indo a Seattle para o casamento de um amigo (relatos em breve!).

Entre os casamentos, muitos outros acontecimentos, relatados aqui ou não. Páscoa com a família na Alemanha. Natal com a família na Virgínia. Fins de semana (tradicionais ou prolongados) no Rio de Janeiro e em diferentes cidades do Rio Grande do Sul: Cambará do Sul, Coqueiros do Sul, São Lourenço do Sul. Viagens de trabalho a Brasília e São Paulo.

Mais impressionante que o tremendo impacto dessas andanças nas minhas finanças (ha!) é que não foi um ano sabático: eu trabalhei muito. Aliás, só para isso, percorri 4.000 quilômetros de casa ao trabalho e do trabalho para casa. E mesmo assim consegui viajar muito a lazer também.

Momento retrospectivo que vai parecer fora de contexto – mas garanto que não é:

O ano anterior, 2012, tinha sido um ano bastante ruim para mim – sem exagero, o pior. Por isso, minha única expectativa para 2013 era ter um ano melhorzinho. É uma estratégia recomendável: o risco de frustração é diretamente proporcional à magnitude das expectativas.

Em 2013, voltei a cantar num coro, o Grupo Cantabile, depois de um ano inteiro (o tal 2012) sem coro. Cresci profissionalmente e fui de um emprego muito bom a outro com potencial ainda maior. Fiz mais de 5.000 fotos. Escrevi 96 textos aqui no site.

Tudo isso foi importante para mim e me faz concluir que, embora ainda precise fazer alguns autoajustes, estou mais próximo do balanço positivo que costumava manter e que perdi em algum momento nos últimos anos. Perceber o quanto viajei no último ano foi a cereja que faltava no bolo.

Reflexões cariocas 2012

Muito de importante aconteceu na minha vida recentemente por causa do Alpha.

Em 2009, começava a frequentar a City Grace Church em NYC. Quando comentei com o pastor que eu tinha feito o Alpha em 2003, ele me convidou para ajudar na primeira edição do Alpha naquela comunidade. Foi aí que, num exemplo arrepiante de como o mundo é pequeno, ganhei “pais nova-iorquinos”, a pastora Nancy e seu esposo Ali. Em 2011, logo depois que voltei ao Brasil, vi-os novamente, em mais um exemplo arrepiante de como o mundo é pequeno: eles vieram ministrar em Pelotas um treinamento Alpha, em que servi de intérprete. Em novembro de 2012, como comentei, uma conferência Alpha me levou ao Rio de Janeiro. E agora, início de novembro de 2013, outro evento Alpha me levou de novo ao Rio.

Mas vou com calma, porque hoje quero contar da viagem Alpha ao Rio em 2012. Foi bem fraca fotográfica e turisticamente, mas me enriqueceu muito em outros aspectos.

Relacionalmente, o enriquecedor do tempo no Rio foi rever e passar tempo de qualidade com pessoas queridas que eu não via fazia algum tempo, além de conhecer outras que viriam a ser importantes para mim. (Não vou citar ninguém, para não cometer injustiças.)

Espiritualmente, o enriquecedor foi algo que aconteceu comigo na igreja anglicana Christ Church, em Botafogo, no domingo, 25 de novembro de 2012. Para ter mais fidelidade aos detalhes, vou recorrer ao texto de um e-mail que escrevi a um amigo na época:

Espiritualmente: algo incrível aconteceu. No domingo, durante um tempo de oração após a mensagem do Nicky Gumbel, ele falou que o Espírito Santo lhe dizia que um jovem ali presente estava se sentindo frustrado, cansado e ansioso, e que esse jovem tinha um chamado a servir ao Senhor. E convidou esse jovem a subir ao altar, para orar por ele.

Eu quase caí de joelhos. Eu sabia que aquela pessoa era eu. Se fosse resumir a forma como me sentia ao longo de 2012, eu só poderia usar as mesmas palavras que ele tinha usado. E eu nunca tinha me sentido mais chamado a servir ao Senhor.

Parte de mim se opôs fortemente a ir para o altar. “Ele pode estar me chamando, mas como é que eu conseguiria fazer isso dar certo?” Sou um Martin que (diferentemente do Luther) não tem coragem de desistir do Direito e um Dietrich que (diferentemente do Bonhoeffer) não tem coragem de estudar Teologia!

Mas parte de mim me impulsionava a ir ao altar. “Como posso resistir se Ele está me chamando? Talvez eu não possa fazer isso dar certo por mim mesmo, mas Ele certamente pode. Tenho de ir.” Então fui, e oraram por mim e me abençoaram.

Não tenho dúvidas da presença do Espírito Santo naquele momento. Senti um calor dentro do peito, como de uma chama, algo de que até então só tinha ouvido falar. Depois fiquei forte e ao mesmo tempo fraco, como escrevi no dia seguinte:

Eu me sinto renovado, fortalecido. Ao mesmo tempo, estou sensibilizado e reflexivo todo o dia de hoje. Preciso fazer algo a respeito do que aconteceu, mas não sei exatamente o que — acho que por enquanto só me resta orar a respeito e pedir a meus amigos cristãos que façam o mesmo por mim. Gostaria de não ter de voltar logo para Porto Alegre e para o trabalho… precisaria de mais tempo para refletir e orar sobre o que aconteceu.

Refletir e orar foi o que me esforcei em fazer, mas o que eu temia se realizou, como escrevi a um amigo já no início de 2013 (um tempo de bastante silêncio aqui neste site):

A experiência espiritual que tive no Rio de Janeiro foi memorável, mas não teve grandes desenvolvimentos posteriores. De volta para casa, para a realidade, o trabalho continua tomando a maior parte do meu tempo, e não tenho energia, e não consigo encontrar uma igreja onde tenha vontade de me envolver, e fico desanimado para orar e meditar e ler a Palavra, e peco, e acabo concluindo que sou um péssimo cristão.

(Continua…)

A Economia desceu pelo ralo

Quando ganhei na Mega-Sena em agosto, comentei que não compraria um apartamento de três milhões de reais, por causa da minha frugalidade, entre outros pontos:

… a perspectiva (não vale a pena acumular “tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e furtam”, Mateus 6:19) que orienta meus princípios (frugalidade é um deles) e prioridades (patrimônio não é uma delas).

Porém, pequei (tá, parei com o p agora) contra meu próprio ideal de frugalidade. Durante a viagem que fiz à Índia em janeiro, visitei Jaipur, famosa pela joalheria artesanal, e comprei um anel de formaturas para mim mesmo. Mais que um souvenir bonito, é único e personalizado, com três pedras — Direito, Economia e Mestrado. Não foi um autopresente tão caro quanto teria sido no Brasil, mas foi caro se considerada isoladamente sua utilidade: nenhuma.

Dias depois, percebi que a pedra do Mestrado estava solta e poderia cair. Fiquei bem chateado e deixei o anel na caixa por um bom tempo até encontrar alguém que pudesse consertá-lo. Só depois do retorno a Porto Alegre é que encomendei o conserto. O joalheiro fez um excelente trabalho. A pedra ficou bem segura. Comecei a usar o anel.

Isso até perceber que outra pedra, a da Economia, ficou bem pouco solta. Não achei que pudesse cair, mas meu subconsciente achou e me avisou. Várias vezes sonhei que a pedra tinha caído. (Sonhei várias vezes, mesmo.) E há poucos dias de fato caiu. Não vi quando exatamente, mas suspeito que tenha sido ao lavar as mãos. Acho que a Economia desceu pelo ralo, tanto quanto minha frugalidade desceu pelo ralo quando tomei a decisão de comprar o anel.

Talvez eu conseguisse uma pedra substituta com alguma facilidade. O Brasil é o maior produtor mundial de águas-marinhas, então imagino que consiga encontrar uma com lapidação semelhante à das outras duas. Depois, só teria de encontrar alguém que se dispusesse a fixá-la no anel.

Já contrariei meu instinto frugal, que me dissera para não comprar o anel. Também contrariei as sugestões do meu inconsciente, que tentou me avisar da perda iminente. E contrariei um amigo meu, que comentou ter gostado do anel, mas sugestivamente perguntou: “simboliza que estás casado com a academia ou com o trabalho?”

Depois de tanta contrariedade, o problema maior talvez seja ter vontade de tomar as providências e despender para consertar o anel. Por enquanto, ficará na caixinha.

Feitiço de segunda-feira

Tudo começa com uma noite maldormida de domingo para segunda-feira.

Primeira pergunta que me fazem no trabalho: por que essa cara acabada?

Última pergunta que me fazem no trabalho: alguém te deu um soco no olho?

É, parece que estou com lindas olheiras já no primeiro dia da semana.

No intervalo de almoço gasto uma boa grana não orçada trocando um componente elétrico não consertável do carro (que eu tanto pensara em vender e não vendi por pouco).

Meu trabalho não rende tanto quanto gostaria, esperava e precisava.

Fui jantar na casa da minha madrinha, disposto a fazer o dia dar certo afinal. Estava indo tudo muito bem — até que respinguei umas gotas de molho escuro na camisa clara.

Perdi um de meus celulares (que eu nem deveria ter, porque não sou homem de ter dois celulares).

Também perdi tempo precioso procurando o celular perdido, em vão, e não aproveitei como queria a visita dos meus pais.

Antes de ir dormir, esfreguei tira-manchas na camisa e coloquei-a na máquina para enxaguar. Enquanto isso, aproveitei para ler. Na página 200 do livro, uma surpresa: encontrei uma nota de 50 reais, que tinha colocado ali e nem me lembrava mais.

Olhei as horas. Já era terça-feira.

Publicidade? Não, obrigado.

Quase não recebo cartas. A maioria das contas a pagar vem por e-mail ou são debitadas na conta bancária. Não tenho assinatura de nenhuma revista atualmente. Mesmo assim, sempre que abro minha caixa de correio, está cheia.

Tiro tudo de dentro dali e faço a triagem de um amontoado de irrelevância: folhetos, ímãs de geladeira, panfletos, cupons, jornalecos ou revistinhas institucionais e outras formas de propaganda. Acabo resgatando um ou dois envelopes do meio de um montão de quinze ou vinte ou oitenta papéis. A maior parte da pilha vai para a lixeira convenientemente instalada ao lado da caixa de correio. (Prefiro nem pensar muito no alto risco que corro, ao fazer a triagem com pressa e sem paciência, de descartar algum envelope importante.)

Esse tipo de propaganda definitivamente não me alcança. Pior ainda, me irrita, porque me dá trabalho, desperdiça recursos, exige tempo meu, produz lixo desnecessário.

Talvez o aspecto mais grave seja a sensação de desrespeito à minha soberania como consumidor. Se compro uma revista ou um jornal, posso esperar ser exposto a publicidade; faz parte das regras do jogo. Porém, não me parece fazer sentido ser obrigado a ser exposto, na minha própria caixa de correio, a publicidade indesejada. Noutros países, isso é óbvio.

Em Portugal, a Lei 6/99 regula a “publicidade domiciliária”. Seu artigo 3.º determina:

É proibida a distribuição directa no domicílio de publicidade não endereçada sempre que a oposição do destinatário seja reconhecível no acto de entrega, nomeadamente através da afixação, por forma visível, no local destinado à recepção de correspondência, de dístico apropriado contendo mensagem clara e inequívoca nesse sentido.

Em bom português brasileiro: tendo eu afixado na caixa de correio de minha residência portuguesa um adesivo que indique claramente meu desejo de não receber publicidade, se alguém depositar publicidade ali, estará descumprindo a lei, que fixa uma pena de multa.

Sabe-se lá se essa lei tem sido aplicada ou se tem protegido eficazmente os portugueses da publicidade indesejada. Fato é que lá ela existe. No Brasil, propaganda comercial é matéria de competência legislativa privativa da União (artigo 22, inciso XXIX, da Constituição Federal), mas desconheço lei brasileira no mesmo sentido da portuguesa.

Melhor ainda é a abordagem suíça. Lá, pelo que sei, não há lei no mesmo sentido da portuguesa. Há apenas bom senso, ou, no mínimo, aparência de bom senso. A própria página sobre marketing direto do site de La Poste, o serviço postal suíço, esclarece à clientela comercial (traduzindo e adaptando do francês):

Alguns preferem não receber publicidade não endereçada. Eles podem manifestar essa preferência, afixando um adesivo “Não, obrigado — sem publicidade” em sua caixa de correio. La Poste quer respeitar essa escolha […]. Postagens com fins publicitários não são distribuídas nas caixas de correio em que um adesivo nesse sentido tenha sido afixado.

Em Genebra vi muitas caixas de correio com adesivos “Non, merci — pas de publicité“. Talvez isso não garanta sempre a ausência de publicidade na caixa de correio (não garanto bom senso de ninguém, nem mesmo de cidadãos de países desenvolvidos), mas o fato é que os adesivos “Pas de pub svp” são bastante comuns e a intenção é reconhecida e geralmente respeitada, no mínimo pelo serviço postal.

Se eu afixar um adesivo dizendo “Não desejo receber publicidade obrigado” na minha caixa de correio aqui em Porto Alegre, será que fará diferença? E se todos nós que não desejarmos receber publicidade na caixa de correio o fizermos?

 

Correspondência

Pode até ser que eu não precise tanto de uma escrivaninha ou não escreva cartas, mas certamente escrevo e-mails. Muitos. Longos. É assim desde os idos dos anos 1990 (!), quando passei a ter um endereço de e-mail. Acho que as primeiras pessoas para quem eu escrevia eram minhas irmãs, quando eu morava em Pelotas e elas, em Porto Alegre. Algum tempo depois, elas foram para o exterior, e o e-mail ficou ainda mais importante. Às vezes eu ensaiava uns e-mails em alemão para meu cunhado alemão, para praticar. (E pensar que eu já tive condições de escrever e-mails em alemão… Hoje não arrisco, não me exponho.)

Nos anos 2000 meus e-mails deixaram de se restringir à família. Participei de uma conferência internacional sobre mudança climática, com jovens de muitos países, e acabei fazendo amigos e conexões internacionais. Comecei a me corresponder com amigos no Reino Unido, no Canada, na Polônia. Participei de mais conferências e fiz alguns estágios no exterior e, com isso, fui expandindo a lista dos países de correspondentes: Argentina, Alemanha, China. Nunca senti falta de me engajar em uma rede de pen pals, amigos por correspondência. Eu já tinha uma.

Minha mania de e-mail alcançava também os próximos. De São Lourenço ou de Pelotas, escrevia mesmo para amigos aqui do Brasil, de cidades mais distantes, ou até da mesma cidade, quando não conseguia encontrá-los tão frequentemente quanto gostaria. Quando fui fazer mestrado na NYU a coisa se agravou: dos Estados Unidos eu me correspondia para os amigos de outros países e ainda mais para os do Brasil, para manter o contato. Foi assim de 2009 a 2011, até voltar ao Brasil e vir para Porto Alegre. Agora tenho também na lista um número grande de amigos a quem escrever nos Estados Unidos.

Hoje minha lista de contatos de e-mail é absurdamente grande; a de amigos com quem me correspondo, um subconjunto de magnitude relevante. Com a rotina de trabalho e os curtos intervalos para atividades extraprofissionais, sinto (no sentido de perceber e também de lamentar) que não mais tenho conseguido manter regularidade e disciplina nas minhas correspondências pessoais (não só nas correspondências pessoais, mas o assunto do texto é só correspondência, então vou me restringir!). As frases “Sorry for my delayed response” (“Desculpa a demora na resposta”) e “I’m way behind in my correspondence” (“Estou atrasado com minha correspondência”) começaram a surgir nas minhas respostas. Antes conseguia escrever poucos dias depois de receber um e-mail. Agora às vezes demoro semanas.

Ainda que possa demorar, respondo sempre. É um compromisso que tenho com meus correspondentes, embora nem todos eles tenham o mesmo compromisso comigo. Tudo bem. Gosto e sinto necessidade de manter contato com os amigos. Facebook e Twitter e LinkedIn e tantas outras redes sociais suprem apenas parcialmente essa necessidade. São muito impessoais — e cada vez mais enervantes por causa da crescente inundação de compartilhamentos irrelevantes. Pode me chamar de saudosista. Sigo fiel ao e-mail.

Eu precisava tanto de uma escrivaninha

Quando vim morar onde moro hoje, um apartamento semimobiliado, um dos poucos móveis que fiz questão de comprar foi uma escrivaninha. Não conseguia me imaginar sem uma. Na casa dos meus pais eu tinha uma bem grande; no meu dormitório na NYU, uma maior ainda. Como comecei a vida de trabalho como pesquisador e tradutor freelance, uma escrivaninha continuou a ser necessária (já que nem sempre se pode trabalhar em um café). Será que trabalhando em turno integral como advogado aqui em Porto Alegre uma escrivaninha seria tão importante para mim? Pouco importava. Eu precisava de uma escrivaninha.

Lembro que um dia, conversando com minha irmã Lucila pelo telefone, justifiquei a ela mais ou menos assim minha necessidade de comprar uma escrivaninha: “Preciso de um lugar adequado na sala onde possa usar o computador, ler, estudar, escrever. Por exemplo, onde eu escreveria uma carta?” Silêncio por alguns segundos intermináveis. Ela achou engraçado. Eu também achei engraçado, depois que ouvi o que eu mesmo tinha dito. Ninguém escreve cartas hoje em dia. Nem eu. Mas precisava de uma escrivaninha.

Procurei muito por uma escrivaninha que me agradasse. Encontrei uma de um metro de largura, bem no tamanho do espaço que me sobrava (como se me sobrasse espaço neste apartamento pequeno!). É em imitação de cerejeira, que combina com o rack da TV que fica bem ao lado dela, e tem um detalhe branco, que combina com o resto da mobília da sala. Agora estou aqui, digitando este texto, sentado na poltrona reclinável da sala — não diante da escrivaninha. É também aqui, não ali, que eu costumo ler. Volta e meia me surpreendo sentado num banco da cozinha, com o computador sobre a mesa de refeições. Cheguei a escrever cartas (sim, cartas!) ali na cozinha. Não sobre a escrivaninha da sala.

Ou seja: eu não precisava tanto assim de uma escrivaninha.

Lei de Segurança Nacional com os dias contados

Conforme amplamente noticiado, dois manifestantes que alegadamente depredavam uma viatura da Polícia Civil em protestos em São Paulo foram presos em flagrante pelo crime de sabotagem de meio de transporte, previsto na Lei de Segurança Nacional (LSN)Acabaram sendo soltos, por determinação judicial, mas isso não evitou a discussão sobre a adequação do emprego da LSN.

Junto-me ao coro dos juristas: o Código Penal teria sido uma escolha mais adequada ao caso. Os protestos, por mais irrazoavelmente danosos que tenham sido, não lesaram nem expuseram a perigo de lesão nenhum dos bens jurídicos que a LSN se propõe a proteger: nem “a integridade territorial e a soberania nacional”, nem “o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito”, nem “a pessoa dos chefes dos Poderes da União”.

Mais que isso, entendo que a discussão deve ser ampliada: nos atuais tempos de democracia, ainda cabe usar uma LSN criada em (e para) tempos de ditadura?

Concordo com Gustavo Romano, que assim escreveu para a Folha:

A atual LSN surgiu em 1983, na última ditadura, e é uma variação de outras leis do governo Vargas e reinventadas nos anos 1960 e 70. Todas tiveram o objetivo de suprimir movimentos que ameaçassem o ditador de plantão. E é essa sua linhagem histórica que nos obriga a ponderar se o uso de uma lei criada para proteger ditaduras é a melhor solução na preservação da democracia.

Vou além de concordar que precisamos ponderar: estou convicto de que não, uma lei criada para proteger ditaduras não é a melhor solução na preservação da democracia. Ainda que a LSN fosse aplicável ao caso dos protestos, seu peso simbólico negativo desautoriza sua aplicação, que é incompatível com a Constituição Federal de 1988 e o regime democrático.

Antes de seguir o argumento, devo comentar a parte final do texto de Romano:

Essa incerteza sobre que lei aplicar evidencia a falta de instrumentos jurídicos. Leis que seriam aplicáveis parecem brandas, e as que proveem mais rigor não foram elaboradas para lidarem com situações como a dos protestos.

Discordo. Primeiro, não há falta de instrumentos jurídicos: o Código Penal existe e é adequado (contrariamente ao caso da LSN, que não deveria existir e é inadequada). Segundo, o que a incerteza sobre qual lei aplicar ao caso dos protestos evidenciou foi que, mesmo depois de quase trinta anos, o Brasil ainda é um experimento incipiente de democracia. Infelizmente, ainda há muitos nostálgicos pela ditadura e seus métodos, o que se reflete na forma como pensam e agem.

Um exemplo: em 2005, o então Presidente da República, mesmo depois de ter lutado contra a ditadura por muitos anos, determinou o cancelamento do visto de um jornalista estrangeiro e ordenou sua expulsão do território brasileiro em oito dias. O motivo: o Presidente da República não gostou do que o jornalista disse. A base legal: o Estatuto do Estrangeiro, uma lei que, como a LSN, também foi sancionada durante a última ditadura. O Presidente da República voltou atrás, depois de um puxão de orelhas do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

[N]o Estado Democrático de Direito não se pode submeter a liberdade às razões de conveniência ou oportunidade da Administração. E aos estrangeiros, como aos brasileiros, a Constituição assegura direitos e garantias fundamentais descritos no art. 5º e seus incisos, dentre eles avultando a liberdade de expressão. E dúvidas não pode haver quanto ao direito de livre manifestação do pensamento (inciso IV) e da liberdade de expressão da atividade de comunicação, “independentemente de censura ou licença” (inciso IX).

O Estatuto do Estrangeiro segue vigente, por ser compatível (de forma geral) com a Constituição. Mas o mesmo não foi o destino da Lei de Imprensa. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que essa lei, que também fora sancionada em tempos ditatoriais para restringir a liberdade de expressão e consolidar o regime autoritário, era incompatível com a ordem democrática instituída pela Constituição Federal de 1988.

Demorou vinte anos após promulgada a Constituição, mas o Judiciário enfim extirpou do Direito Brasileiro a anacrônica Lei de Imprensa. Os protestos em São Paulo e a tentativa de responder a eles usando a LSN evidenciam, não a falta de instrumentos jurídicos, mas uma excelente oportunidade de dar fim também à LSN.

Vergonhosamente motorizado

Durante um curto tempo com carteira de habilitação vencida e sem carro, andei de ônibus em Porto Alegre. Sou muito favorável ao transporte coletivo, apesar dos contratempos, por ser mais sustentável, menos estressante, mais produtivo. Cada vez mais convicto de que o custo de ter um carro não cobre a comodidade (há até calculadoras online que facilitam essa avaliação), comecei a refletir seriamente sobre me desfazer do carro.

Com vergonha e um quê de irresignação, admito que decidi não me desfazer do carro por enquanto. Meus motivos são fracos:

  • Gosto da (sensação de) liberdade proporcionada por ter um carro. Dá trabalho na vida não ter um, e eu ando um pouco chateado de passar trabalho. Pronto: juntei já no primeiro item os motivos mais fracos, egoístas, insustentáveis, vergonhosos.
  • A experiência de andar de ônibus piorou bastante por causa de uma onda de calor fora de época. Comecei a pensar em mim, de gravata, no verão: três meses, com alta umidade e temperaturas acima de 30 graus, em ônibus cheios e potencialmente abafados.
  • Com as esperas pelos ônibus e os trajetos feitos mais lentamente que de carro, vi que se esvaiu bem mais rapidamente meu pouco tempo disponível fora do trabalho. Este item a ver com a aversão a passar trabalho, mas num nível mais profundo: quando passar trabalho significa perder tempo já escasso, eu me sinto mais autorizado a ser egoísta.
  • O status quo me afeta significativamente. Eu já tenho um carro. Se não tivesse, talvez persistisse mais na ideia de usar transporte coletivo e eventualmente táxi.
  • A perda de padrão de vida me incomoda mais do que gostaria de admitir. Talvez porque não seja só uma perda aparente. Porto Alegre (ainda) não é (mais) uma cidade com transporte público conveniente e bom o suficiente a ponto de atrair classe média.

“Por que ter um carro, não precisando de um?” Ainda penso assim, mas acabei concluindo que, em Porto Alegre, preciso de um carro. Espero um dia sentir que não preciso mais.