Nicolas Desjardins
João dos Santos e sua filha Anabela moravam em apartamento próprio, mas parcamente mobiliado, na periferia de Porto Alegre. Ele tinha trinta e cinco anos, apesar do aspecto de gurizão de vinte e cinco. Era enfermeiro e trabalhava em um posto de saúde que ficava perto de onde morava, tão perto que ia de bicicleta. Ela tinha catorze; crescera sem a mãe, que abandonou o lar e a criança de colo para tentar a vida com um sem-vergonha por quem se apaixonou. Assim é que João e Anabela tinham um ao outro na vida, e nada mais. Ele trabalhava por ela. Podia arcar com um só luxo: pagar aulas particulares de francês para a filha. Ela, por seu lado, estudava por ele. Tinha um só projeto: ser professora de francês e retribuir o esforço do pai.
Nunca se poderia imaginar que um comentário inocente viria a fazer tanta diferença na vida de João e Anabela. “O Canadá tem um dos melhores sistemas de saúde do mundo!”, disse aos colegas um dos estudantes de Medicina que atendiam no posto de saúde. “E como os canadenses têm poucos filhos, eles incentivam bastante a imigração. Quem sabe tem chance lá pra nós, hein? Tudo de bom!”.
Foi por acaso que João ouviu isso, mas ficou atento. Ele já ouvira coisas positivas sobre o Canadá. Não que ele fosse um homem erudito, mas ao menos assistia a algum programa de televisão, todas as noites, até ser vencido às pauladas pelo cansaço. Pela televisão, ele ficara sabendo que o Canadá tinha mesmo um bom sistema de saúde, e que a imigração era mesmo facilitada – e também que se falava francês por lá. O comentário do estudante de Medicina fez João pensar. No Brasil, não dava mais pra viver. Talvez no outro extremo do continente (ele ainda lembrava um pouco das aulas de Geografia!) sua profissão fosse mais valorizada. No Canadá, onde o governo ajuda tanto os imigrantes, talvez desse para pagar a faculdade para Anabela. Melhor ainda – ela talvez conseguisse passar em uma faculdade lá, para estudar francês em um país de língua francesa. Talvez. Tudo de bom…
Mesmo no seu dia de folga, João pegou a bicicleta e foi ao posto de saúde, para usar o computador da sala dos médicos. Buscou informações na Internet sobre obter o visto de imigrante. A burocracia não aparentava ser complicada, cara ou demorada. Era preciso apenas juntar uns documentos aqui, responder uns formulários ali, e enviar tudo ao serviço de imigração. João fez tudo isso em sigilo, sem contar para Anabela. Economizou em tudo para conseguir pagar as taxas. Apesar do esforço, não tinha muita esperança de que desse certo. Qual não foi sua surpresa quando, oito meses depois, chegou uma carta. O Consulado do Canadá em Porto Alegre chamou para uma entrevista, em inglês e francês. E chamou não só João, mas também Anabela – os dois candidatos à imigração.
Não tinha mais como esconder: João contou para a filha sobre a sua idéia, sobre o tiro no escuro, sobre a entrevista. Nunca tinha visto os olhos verdes de Anabela tão azuis como naquele dia. Brilhavam como nunca. Ah, uma possível ida a um país de língua francesa! Anabela também já havia ouvido falar sobre o Canadá. Nas aulas de francês, a professora particular dava uns toques sobre a cultura canadense, o estilo de vida, o bilingüismo… A fantasia sem amarras de Anabela permitia que ela se imaginasse vivendo lá.
Na entrevista, os funcionários do Consulado ficaram muito impressionados com o francês da menina e com o inglês do pai – positivamente quanto a ela, negativamente quanto a ele. Ainda assim, o que João sabia de inglês, recordações dos três semestres de curso básico que fizera, bastava para as exigências da entrevista. Semanas mais tarde, chegou outra carta: tinham sido emitidos os vistos de imigração.
Foi preciso ler, reler e treler a carta, tal era a incredulidade dos dois – uma incredulidade feliz. Logo passou o período de anestesia e João se obrigou a confrontar seus questionamentos. Emigrar para um país distante, sem garantia nenhuma, submetendo a si mesmo e à filha a um banho de imersão em incerteza – era isso mesmo que ele queria? É claro que não. Mas, ora, não era isso que estava em jogo. Havia garantias: o governo canadense lhe daria uma determinada quantia em dinheiro para o seu estabelecimento e para as despesas dos primeiros meses. Receberia, além disso, um benefício de seguro-desemprego por doze meses, até que pudesse encontrar um trabalho condizente com suas habilidades. Não se tratava de um banho de incerteza; na verdade, era uma grande oportunidade para que João fizesse um retorno na rua sem-saída em que sua vida tinha se transformado. Ele era jovem e resolveu apostar tudo nessa chance única. Depois de fazer o retorno, restaria escolher se queria seguir à frente, à direita ou à esquerda. Voltar para trás, nunca mais.
Vendeu o quase-nada que possuía: do apartamento à bicicleta velha que tinha mais valor sentimental do que econômico. Conseguiu juntar um dinheirinho razoável, ao menos suficiente para pagar os bilhetes de passagem aérea e complementar, se preciso, a ajuda do governo canadense. Afinal, precisaria de dinheiro para reconstruir a vida. Ir para o Canadá já não era apenas uma idéia, mas um projeto de vida. João estava decidido a não mais voltar. Não tinha por que deixar algo seu no Brasil.
(Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre: http://www.portoimagem.com)
Num vinte e nove de julho, João e Anabela devolveram à hospedeira a chave do quarto de pensão onde moraram por um mês, após a venda do apartamento. Cada um tinha uma mala, não muito grande nem pesada. Pegaram uma lotação para o aeroporto. Fazia um frio de rachar em Porto Alegre naquela típica madrugada de inverno. O vento soprava forte no Salgado Filho e o chefe daquela unidadezinha familiar, totalmente inexperiente no quesito viagens aéreas, tremia de medo – muito embora, macho, não admitisse: “não é medo, é só um pouco de frio”. Anabela procurava tranqüilizá-lo: “Ô, pai, nem te preocupa: a professora de Geografia disse que o avião é um dos meios de transporte mais seguros que existem – quase nunca acontecem acidentes”. O argumento não convenceu o homem (essa aula de Geografia ele tinha faltado) e ele continuou disfarçando o medo.
Anabela, ao contrário, nem se quisesse poderia esconder a alegria. Desconversava feliz da vida: “Ah, falando em transporte, tu sabia que no Canadá tem metrô? E não é que nem o Trensurb aqui de Porto: é um metrô mesmo, que anda sempre por baixo da terra. Dizem que também é tri rápido e seguro! Será que a gente vai andar muito de metrô lá, pai?”. João não conseguia muito mais que murmurar respostas sem sentido e continuar alimentando o seu medo bobo. Anabela não dava bola – nada poderia tirar-lhe a alegria. Despedira-se de suas melhores amigas e as proibiu de ir ao aeroporto. Não queria ter mais despedidas chorosas nem ver nenhuma delas no observatório do andar de cima, dando tchauzinho. Queria mergulhar na vida nova. Manteria contato, é claro, mas não queria oportunidade de arrependimentos e dores da partida.
Os vôos, as conexões e a chegada ao Canadá se deram sem complicações, permitindo que se dissipassem o medo e as preocupações de João. Era a manhã do dia trinta, um domingo ensolarado, quando pousaram no aeroporto internacional Trudeau, na cidade de Montreal. Fazia quarenta graus – não sabiam que era verão no hemisfério norte (essa aula de Geografia os dois tinham faltado). João e Anabela guardaram as roupas do inverno gaúcho na mala e tiraram o dia para conhecer um pouco da metrópole. As flores e os jardins, a arquitetura do centro antigo da cidade, o povo receptivo, gente falando francês, gente falando inglês… Não restavam dúvidas: queriam morar lá mesmo.
O primeiro pernoite foi em um albergue de juventude bem barato. No dia seguinte, uma segunda-feira, João tratou de encontrar, no lado francês da cidade, um apartamento. Era tão simples e parcamente mobiliado como o de Porto Alegre, mas havia boas perspectivas: era apenas o começo. João procurou o serviço de imigração e obteve o auxílio inicial do governo. Abriu conta bancária para fazer o depósito do cheque e das economias trazidas do Brasil, já convertidas em dólar. Depois, foi com Anabela matriculá-la em uma escola pública. Ela estudaria em língua francesa. Naquele dia os olhos dela brilharam e azularam tanto que nunca mais voltaram a ser verdes.

(Praça Jacques-Cartier, e a Prefeitura antiga de Montréal, ao fundo)
O arranjo, até então, estava perfeito, mas chegou o mês de agosto. Na primeira hora do dia, Anabela foi para a escola e João, à secretaria de saúde, em busca de emprego. “Seu diploma não vale, Monsieur Santô”, dizia o atendente. João tinha dificuldade de entender. “Seu diploma brasileiro não tem validade aqui no Canadá, Monsieur”, repetia o rapaz, esforçando-se para falar devagar e claramente. João compreendeu já na segunda vez – seu problema era não querer compreender. Como assim, não tem validade? Saiu dali e foi direto até a Prefeitura. Era imigrante e tinha direitos. “De fato, o senhor tem vários direitos como imigrante”, concordou o funcionário, “mas, para exercer a enfermagem, terá de estudar em uma universidade canadense. O senhor não leu os papéis da imigração?”.
Não, João não lera os papéis da imigração – pelo menos não essa parte. Saiu dali com lágrimas nos olhos: era apaixonado por sua profissão. Descendo a escadaria da Prefeitura, avistou a Praça Jacques-Cartier, logo em frente, cheia de turistas. E os turistas estavam cercados por feirantes, músicos, pintores – todos tinham algo para vender. Foi um consolo para João. Não lhe faltariam oportunidades de trabalho naquela cidade. Viu também, à margem da praça, uma carruagem, levada por um belo e forte cavalo branco e conduzida por um senhor grisalho, sorridente e vestido em trajes de época. Na parte de trás da carruagem, um casal de turistas apaixonados devorava com os olhos as belas imagens à sua volta. João se imaginou naquela posição, em alguns anos: grisalho e sorridente, conduzindo casais em uma carruagem ao longo das ruas românticas da cidade antiga de Montreal. E pensou no sorriso e nos olhos azuis contemplativos de Anabela, sentada na carruagem, num dia de folga em que ele pudesse levá-la para passear. Fez uma boa oferta ao dono da carruagem (foram-se as economias) e começou a trabalhar no dia seguinte.

(A carruagem, em frente à Praça Jacques-Cartier!)
O negócio ia bem, até que chegou o inverno. Em dezembro, a temperatura caiu para vinte graus negativos. Quando a temperatura ficava mais amena, perto de zero, nevava muito. De um jeito ou de outro, poucos saíam de casa para um passeio de carruagem. No início, João passava dias inteiros ali, parado em frente à Praça Jacques-Cartier, esperando algum turista corajoso – que nunca vinha. O jeito foi guardar a carruagem em um depósito, mandar o cavalo para um haras na periferia e pedir o seguro-desemprego ao governo. Voltaria a trabalhar em um mês.
Mas o que ele não tinha era seguro-desespero – e começou a preocupar-se, achando que se encaminhava ao mesmo insucesso que vivia no Brasil. No mês de janeiro viciou-se em televisão, o que só serviu para aprimorar seu francês e destruir sua auto-estima. Fez um super-rancho no início do mês e cozinhava todos os dias em casa, só para si, na hora do almoço. Anabela almoçava na escola. Sua aula terminava às cinco da tarde. Ela saía de lá às cinco e dez e, depois de vinte minutos na linha verde do metrô, chegava à estação de destino.

(Estação de metrô, em Montréal)
Esse era o único momento do dia em que João colocava os pés fora de casa, naquele inverno. Todos os dias, pontualmente às cinco e quinze, saía de casa e caminhava até a estação Honoré-Beaugrand, a dez minutos a pé do apartamento; levava no máximo quinze minutos, quando o gelo na rua dificultava muito a caminhada. E lá João esperava Anabela. Ela descobria um mundo novo; ele, como no Brasil, só tinha a ela. Esperá-la dia após dia e vê-la ansiosa para contar as muitas novidades era sua única alegria. O sorriso e o brilho nos olhos de Anabela eram a vida de João.
Naquele dia não havia gelo e João chegou à estação cinco minutos antes do metrô. Esperando na plataforma, viu um pequeno aro de metal dourado perto dos trilhos. Parecia um anel de ouro. “Quem me dera pudesse dar um desses à Anabela…” Mas será que era um anel? Foi para perto, na beirada, e se inclinou para ver melhor. Era mesmo um anel de ouro, com uma pedrinha brilhante! De bobeira, desequilibrou-se e caiu no fosso do metrô, entre os trilhos, bem ao lado da placa onde dizia: 1.200 Volts. Por um triz! João colocou discretamente o anel no dedo mínimo e gritou por ajuda para subir de volta à plataforma. Um passageiro saiu em busca de ajuda, mas o trem vinha rápido.
No trem vinha Anabela. Ela nem imaginava, mas naquela noite… ganharia um anel.
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