Normalmente se explica o uso de “e/ou” com base na necessidade de expressar que algo pode ser só uma coisa, ou só outra coisa, ou ambas ao coisas simultaneamente. Um bom exemplo é o texto que a Wikipédia inclui nas páginas marcadas para revisão:
Esta página foi marcada para revisão, devido a inconsistências e/ou dados de confiabilidade duvidosa.
A página pode ter sido marcada para revisão só por causa da existência de inconsistências, ou só por causa da existência de dados de confiabilidade duvidosa, ou por causa da existência simultânea de inconsistências e de dados de confiabilidade duvidosa. Com o objetivo de prever todas essas possibilidades, a Wikipédia usou a expressão “e/ou”.
Esse argumento pode até explicar o uso de “e/ou”, mas não o justifica. “E/ou” tem um aspecto trágico que torna seu uso reprovável: pode gerar ambiguidade não intencional, uma dificuldade ou mesmo impossibilidade de interpretação.
A ambiguidade, quando intencional, pode ser linda. É recurso literário. Afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho com Escobar? Não há como saber. Ainda bem.
O problema é a ambiguidade não intencional e fora do contexto literário. No texto jurídico, por exemplo, ambiguidade não pode ter lugar.
Vamos supor que, ao redigir um contrato, as partes estabeleçam que a obrigação é “uma e/ou outra”. Se houver discussão judicial desse contrato, o credor argumentará que é a obrigação é “uma e outra”; o devedor, que é “uma ou outra”. O juiz, coitado, terá de decidir ou em favor de um ou de outro, porque as interpretações deles são logicamente irreconciliáveis. Não importa o que o juiz decida, nunca haverá certeza de qual seria a obrigação que as partes realmente pretenderam estabelecer. E isso só aconteceu porque não souberam redigi-la.
Ainda pior que a ambiguidade gerada pelo “e/ou” é sua falta de justificativa lógica e gramatical.
Meu dia será feliz se e somente se eu comer queijo e doce de leite no café-da-manhã. Preciso comer queijo e doce de leite no café-da-manhã para ter um dia feliz. Se comer só queijo, ou se comer só doce de leite, não terei um dia feliz. O “e” exprime bem essa ideia de adição. A gramática lhe deu o nome feio de conjunção coordenativa copulativa.
Meu dia será feliz se e somente se eu comer ou queijo ou doce de leite no café-da-manhã. Aqui, a felicidade do meu dia fica condicionada ao consumo de um só desses itens no café-da-manhã. Se consumir queijo e doce de leite, ponho tudo a perder (digamos, porque minha dieta vai para o espaço). O “ou… ou”, que é o responsável por indicar claramente que as alternativas são mutuamente exclusivas, recebe o nome feio de conjunção coordenativa disjuntiva exclusiva.
Meu dia será feliz se e somente se eu comer queijo ou doce de leite no café-da-manhã. Se comer só queijo no café-da-manhã, serei feliz; se só doce de leite, também. E se comer os dois? De acordo com a lógica (dos matemáticos e dos gulosos), também. O “ou” usado na frase tem essa propriedade mágica de fazer com que as alternativas não se excluam mutuamente. Mesmo sendo mágico, esse “ou” foi punido com o nome feio de conjunção coordenativa disjuntiva inclusiva.
É nesse último caso que tende a surgir em alguns a tentação de usar “e/ou”. Como comentei logo no início do texto, o “e/ou” normalmente é empregado em situações em que pode ser uma coisa, ou outra coisa, ou ambas. Agora, por que usar “e/ou” se um simples “ou” exprime a mesma ideia, sem causar risco de ambiguidade?
“Mas um ‘ou’ não me parece suficiente para deixar claro que a felicidade do meu dia está garantida se no café-da-manhã eu comer só queijo ou só doce-de-leite, bem como se eu comer ambos”, diz o meu amigo excessivamente zeloso, e continua: “Nesse caso, não caberia usar um ‘e/ou’?” Minha resposta é, categoricamente, não, pelo risco de ambiguidade. Se o excesso de zelo requerer, sugiro o seguinte: Meu dia será feliz se e somente se eu comer queijo ou doce de leite, ou ambos, no café-da-manhã. Aplaquei a necessidade de ser zeloso, mas, francamente, não melhorei em nada a frase com o acréscimo desse “ou ambos”. O “ou”, sozinho, bastava.
Mas o vício do “e/ou” é difundido e chega a produzir absurdos — “e/ous” usados para conectar ideias mutuamente exclusivas. Basta googlar por “responsabilidade solidária e/ou subsidiária” e perceber que há resultados, quando não deveria haver. No Direito, a responsabilidade pode ser ou solidária ou subsidiária; não pode ser solidária e subsidiária ao mesmo tempo.
Lógica, gramática e glutonaria à parte, concluo com mais alguns argumentos contra o “e/ou” (todos começando com a letra “e”, só porque me deu na telha):
- Estética ou estilo: “E/ou” é deselegante. “Essa é a tua opinião”, diz meu amigo que leva tudo para o lado pessoal. Pode ser, mas não estou sozinho. Um número significativo de manuais de estilo e redação desaconselha o uso do “e/ou” justamente por ser deselegante e confuso.
- Economia: Se em vez de cada “e/ou” que escrevi neste texto até aqui eu tivesse usado apenas “ou” (o que, conforme demonstrei, teria sido suficiente), teria economizado minha energia de digitar 30 caracteres e tua energia de ler 30 caracteres. A economia é significativa. E isso que só tratei de economia de energia.
- Esmero na escrita: Se usei “e/ou”, é provável que tenha sido por ficar em dúvida entre “e” e “ou”, seja por não saber exatamente a ideia que queria expressar, seja por não querer parar para pensar sobre qual conjunção usar. Ora, se não sabia o que queria escrever, ou se tive preguiça de pensar antes de escrever, provavelmente não deveria ter escrito nada.
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