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Entretenimento de semáforo

Vem o sinal vermelho e os carros param. Surge alguém que vai de carro em carro pedindo esmolas aos motoristas até vir o sinal verde. No próximo sinal vermelho, o ciclo se repete. Às vezes há uma etapa adicional: antes da mendicância, malabarismos.

A etapa dos malabarismos me confunde. Mendicância entristece; malabarismos deveriam entreter. As duas coisas não combinam. O paradoxo fica ainda mais acentuado porque em regra a tristeza do mendigo transparece. Mendigar já é degradante; mendigar fazendo malabarismos de má vontade é ainda mais degradante.

O que os malabarismos acrescentam ao ritual de mendicância? Duvido que, simplórios como costumam ser, sensibilizem mais motoristas a dar esmolas. Certamente não transformam as esmolas em remuneração por serviços de entretenimento. Primeiro, porque não entretêm ninguém. Segundo, porque são indesejados.

Já me apareceu um desses malabaristas no meio da noite, num cruzamento deserto. A situação me motivou antes a furar o sinal que a abrir os vidros e dar esmola. Outros fazem malabarismos com pedras grandes ou objetos em chamas — tudo o que ninguém quer perto de carros e combustível. São experiências de medo e nunca de diversão.

Não desejo receber material publicitário

A ideia surgiu quando escrevi sobre a publicidade indesejada que recebo na minha caixa de correio:

Se eu afixar um adesivo dizendo “Não desejo receber publicidade — obrigado” na minha caixa de correio aqui em Porto Alegre, será que fará diferença? E se todos nós que não desejarmos receber publicidade na caixa de correio o fizermos?

A resposta à segunda pergunta virá com os resultados de uma campanha que eu ainda hei de começar. Mas a base de dados que me permitirá responder à primeira pergunta eu já comecei a construir. Minha amiga Évelyn preparou e eu afixei na minha caixa de correio o seguinte adesivo:

Não desejo receber material publicitário

Sim, eu sei que as caixas de correio do meu condomínio precisam de reforma. Mesmo assim, sugiro focarmos no adesivo que diz: “Não desejo receber material publicitário.” É meu sincero desejo, afixado na minha caixa de correio na manhã do dia 20 de janeiro. Semanalmente, ao recolher a correspondência, colherei o resultado da afixação do adesivo.

E compartilharei esse resultado semanal aqui, claro. Anunciante que deposita material publicitário na caixa de correio de alguém que expressamente manifesta sua vontade de não receber material publicitário em sua caixa de correio não deve ter vergonha de ser publicamente exposto por fazer isso, certo?

Feitiço de segunda-feira

Tudo começa com uma noite maldormida de domingo para segunda-feira.

Primeira pergunta que me fazem no trabalho: por que essa cara acabada?

Última pergunta que me fazem no trabalho: alguém te deu um soco no olho?

É, parece que estou com lindas olheiras já no primeiro dia da semana.

No intervalo de almoço gasto uma boa grana não orçada trocando um componente elétrico não consertável do carro (que eu tanto pensara em vender e não vendi por pouco).

Meu trabalho não rende tanto quanto gostaria, esperava e precisava.

Fui jantar na casa da minha madrinha, disposto a fazer o dia dar certo afinal. Estava indo tudo muito bem — até que respinguei umas gotas de molho escuro na camisa clara.

Perdi um de meus celulares (que eu nem deveria ter, porque não sou homem de ter dois celulares).

Também perdi tempo precioso procurando o celular perdido, em vão, e não aproveitei como queria a visita dos meus pais.

Antes de ir dormir, esfreguei tira-manchas na camisa e coloquei-a na máquina para enxaguar. Enquanto isso, aproveitei para ler. Na página 200 do livro, uma surpresa: encontrei uma nota de 50 reais, que tinha colocado ali e nem me lembrava mais.

Olhei as horas. Já era terça-feira.

Publicidade? Não, obrigado.

Quase não recebo cartas. A maioria das contas a pagar vem por e-mail ou são debitadas na conta bancária. Não tenho assinatura de nenhuma revista atualmente. Mesmo assim, sempre que abro minha caixa de correio, está cheia.

Tiro tudo de dentro dali e faço a triagem de um amontoado de irrelevância: folhetos, ímãs de geladeira, panfletos, cupons, jornalecos ou revistinhas institucionais e outras formas de propaganda. Acabo resgatando um ou dois envelopes do meio de um montão de quinze ou vinte ou oitenta papéis. A maior parte da pilha vai para a lixeira convenientemente instalada ao lado da caixa de correio. (Prefiro nem pensar muito no alto risco que corro, ao fazer a triagem com pressa e sem paciência, de descartar algum envelope importante.)

Esse tipo de propaganda definitivamente não me alcança. Pior ainda, me irrita, porque me dá trabalho, desperdiça recursos, exige tempo meu, produz lixo desnecessário.

Talvez o aspecto mais grave seja a sensação de desrespeito à minha soberania como consumidor. Se compro uma revista ou um jornal, posso esperar ser exposto a publicidade; faz parte das regras do jogo. Porém, não me parece fazer sentido ser obrigado a ser exposto, na minha própria caixa de correio, a publicidade indesejada. Noutros países, isso é óbvio.

Em Portugal, a Lei 6/99 regula a “publicidade domiciliária”. Seu artigo 3.º determina:

É proibida a distribuição directa no domicílio de publicidade não endereçada sempre que a oposição do destinatário seja reconhecível no acto de entrega, nomeadamente através da afixação, por forma visível, no local destinado à recepção de correspondência, de dístico apropriado contendo mensagem clara e inequívoca nesse sentido.

Em bom português brasileiro: tendo eu afixado na caixa de correio de minha residência portuguesa um adesivo que indique claramente meu desejo de não receber publicidade, se alguém depositar publicidade ali, estará descumprindo a lei, que fixa uma pena de multa.

Sabe-se lá se essa lei tem sido aplicada ou se tem protegido eficazmente os portugueses da publicidade indesejada. Fato é que lá ela existe. No Brasil, propaganda comercial é matéria de competência legislativa privativa da União (artigo 22, inciso XXIX, da Constituição Federal), mas desconheço lei brasileira no mesmo sentido da portuguesa.

Melhor ainda é a abordagem suíça. Lá, pelo que sei, não há lei no mesmo sentido da portuguesa. Há apenas bom senso, ou, no mínimo, aparência de bom senso. A própria página sobre marketing direto do site de La Poste, o serviço postal suíço, esclarece à clientela comercial (traduzindo e adaptando do francês):

Alguns preferem não receber publicidade não endereçada. Eles podem manifestar essa preferência, afixando um adesivo “Não, obrigado — sem publicidade” em sua caixa de correio. La Poste quer respeitar essa escolha […]. Postagens com fins publicitários não são distribuídas nas caixas de correio em que um adesivo nesse sentido tenha sido afixado.

Em Genebra vi muitas caixas de correio com adesivos “Non, merci — pas de publicité“. Talvez isso não garanta sempre a ausência de publicidade na caixa de correio (não garanto bom senso de ninguém, nem mesmo de cidadãos de países desenvolvidos), mas o fato é que os adesivos “Pas de pub svp” são bastante comuns e a intenção é reconhecida e geralmente respeitada, no mínimo pelo serviço postal.

Se eu afixar um adesivo dizendo “Não desejo receber publicidade obrigado” na minha caixa de correio aqui em Porto Alegre, será que fará diferença? E se todos nós que não desejarmos receber publicidade na caixa de correio o fizermos?

 

O homem a serviço da informática

Há poucos dias BIll Gates enfim admitiu que a combinação Ctrl+Alt+Del para dar início ou reiniciar um PC foi uma ideia infeliz. Mas há outras ideias infelizes a serem admitidas…

Inserir uma imagem no MS Word é fácil, mas alguém já tentou extrair uma que já esteja no arquivo, salvando-a como imagem? Era o que eu precisava fazer ontem. Consegui. Mas, no processo, fiquei chocado com o quanto isso é bem menos trivial que deveria ser.

Deveria haver a possibilidade de simplesmente clicar com o botão direito do mouse sobre a imagem e depois clicar em “Salvar como…”, como se pode fazer nas páginas de Internet, mas não há. A MS tratou de não prever nenhuma forma simples (que eu conheça).

A dica da própria MS é salvar o documento em formato HTML e, a partir dele, fazer como se faria em uma página qualquer da Internet. Tão ridículo que me neguei a fazer.

Felizmente, a Internet é uma fonte virtualmente interminável de criatividade, sabedoria e genialidade aleatórias, até a ponto de suprir o ridículo dos desenvolvedores. Googlei “extrair imagem word” (sem aspas) e encontrei esta página, que recomenda os seguintes passos:

  1. Fazer uma cópia do documento em formato DOCX.
  2. Renomear a cópia para extensão ZIP.
  3. Extrair o ZIP.
  4. Na pasta com os arquivos extraídos, entrar na pasta “word” e, dentro dessa, na pasta “media”, onde estarão todas as imagens do documento.

Brilhante. O arquivo DOCX é um arquivo ZIP disfarçado. Como só fui saber disso ontem?

A mensagem secreta no voto não mais secreto

Não declaramos a perda do mandato de um parlamentar condenado à prisão. O Povo não gostou, achando que não votamos corretamente.

Mas estamos atentos aos clamores do Povo. Em resposta, desengavetamos uma proposta de Emenda Constitucional que acaba com o voto secreto no Legislativo, aprovando-a por unanimidade.

Fique tranquilo, Povo. Agora podemos até continuar votando incorretamente, mas o faremos de forma assumida, publicamente. Lembramos que a obrigação de votarmos abertamente não implica necessariamente em obrigação de deixarmos de ter cara de pau.

P.S.: Se a Emenda Constitucional não for aprovada, a culpa será da outra casa, a da bacia virada para baixo, essa instituição elitista, anacrônica e cheia de segredos. Se nada mudar, como de costume, lavaremos nossas mãos, como de costume, nessa grande bacia virada para cima onde nos reunimos.

Um celular deveria bastar

Primeiro comprei um número daquela azul dos 25 centavos por dia. Estava indo muito bem, até que comprei meu primeiro celular (todos até então tinham sido os antigos de pais, irmãs e cunhados). No novo aparelho, a conexão à Internet por aquela azul dos 25 centavos não funcionou, não sei por quê. Migrei meu número para aquela vermelha dos 21 centavos.

Só que eu já estava mal-acostumado a falar com muita gente por 25 centavos. Além disso, muita gente estava acostumada a falar comigo por 25 centavos e não conseguiu se acostumar com o fato de que meu número passou a ser da vermelha de 21 centavos. Causei confusão.

Então resolvi comprar mais um número da azul de 25 centavos, e usá-lo em um dos celulares antigos, herdados, sobressalentes. Anunciei o novo número ao pessoal da azul de 25 centavos. Continuei usando o número da vermelha de 21 centavos no telefone novo, principal, com Internet.

Ambos são pré-pagos. Gasto no máximo 40 reais por mês e me recuso a gastar mais com celular.

Confusão resolvida – para todos, menos pra mim. Tenho de andar por aí com dois aparelho. Às vezes me esqueço de levar ou de carregar um deles (o sem Internet, o secundário, só para chamadas da azul de 25 centavos). Ou perco chamadas de um ou de outro. Ou me esqueço de bloquear o teclado e faço ligações sem saber. Ou todas as anteriores incontrolavelmente.

Tenho uma colega que optou por não ter celular (mais ou menos como estou quase por optar por não ter carro). Acho admirável. É um fator de estresse a menos.

Pra mim, estresse seria ficar sem celular: não tanto pela telefonia (quase não uso), mas pela Internet. Não me imagino sem. A regra pra mim quanto ao número de celulares é a do “um é pouco, dois é bom, três é de mais”, mas menos um. Nenhum celular seria pouco. Um seria bom. Dois já são de mais.

O problema é que não se tem outra opção. Conheço muita gente que, para economizar, tem números de mais de uma operadora, aproveitando as vantagens de cada uma. Fora dos 21 ou 25 centavos nas chamadas para números da mesma operadora, as tarifas são altíssimas – quatro ou cinco vezes as promocionais. As prestadoras de serviço de telefonia móvel não competem: somente dividem, fidelizam, escravizam. E lucram, claro.

Enquanto isso, na Suíça, uma operadora oferece chamadas internacionais por 5 centavos por minuto. Nos EUA, por menos de 50 dólares tinha um pacote ilimitado em tudo: ligações para fixos e celulares em todo o país, SMS para celulares de todo o país e de qualquer operadora, Internet todos os dias sem limitação de volume de tráfego. Todas as operadoras ofereciam pacotes assim.

Um dia a telefonia no Brasil chega lá. Por enquanto, a dica pra quem quer ter telefone móvel sem gastar um absurdo é confundir os amigos tendo vários celulares pré-pagos, um de cada operadora disponível no mercado, para aproveitar as vantagens de cada uma delas.

E, pra carregar tudo isso, com muito estilo, uma pochete.

Tipologia dos médicos no Brasil

No Brasil
temos médicos
de diferentes tipos:
bem e mal-equipados,
nacionais e importados,
capitalistas e socialistas,
preguiçosos e dedicados,
privilegiados e escravizados,
incompetentes e gabaritados,
com diploma revalidado ou não,
doutores por título e por convenção.

O mais interessante dessa lista de tipos
não é que cada linha fica maior que a anterior,
mas que os mesmos tipos existem noutras profissões,
ainda que dessas outras não se ouçam tantos protestos.

Observa com atenção que esta não é uma crítica aos médicos:
protestar é preciso, se as coisas não vão bem ou deveriam melhorar.

Apenas se deve lembrar que os tipos acima vão bem além da Medicina
e são parte integrante desse rico mosaico de diversidade que é nosso país.

A diversidade pode ser bonita (e é, nos tons de pele, nas ideias, na cultura popular),
mas também pode ser feia (como na coexistência de profissionais bons, medíocres e ruins).

Continuem protestando, médicos. Se me permitem sugerir, coloquem seu protesto no contexto:
o de um país em que meritocracia não é regra e em que prioridades e incentivos estão distorcidos.

O sonho da casa própria

Há muitos edifícios residenciais de alto nível recentemente construídos ou em construção em Porto Alegre. Em muitos deles, as áreas comuns dos condomínios têm piscina interna e aquecida, piscina externa, sala de ginástica, salão de festas, quadra de tênis, sala de jogos, sala de brinquedos. Cada apartamento tem duas ou três lareiras, três ou quatro suítes, quatro ou cinco vagas de garagem. Os jardins são amplos e graciosamente planejados; há vidro em abundância; as vistas são encantadoras, para áreas verdes ou o lago. Não faltam sofisticação, requinte, luxo.

Tudo isso está acessível a toda família trabalhadora que consegue apertar o cinto e economizar.

Numa família de quatro pessoas (mãe e pai economicamente ativos, filha e filho menores), com renda familiar de dois salários mínimos, o planejamento pode ser assim: metade da renda paga a prestação do apartamento, enquanto a outra metade (um salário mínimo inteiro) fica disponível para atender às necessidades vitais básicas da família com moradia (sim, porque enquanto o apartamento não está pago ainda é preciso pagar aluguel), alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.

Trezentos e poucos anos depois, o apartamento estará quitado.

Nesse momento, a filha e o filho já serão economicamente ativos e poderão contribuir com o sustento material da família. Supondo que ganhem um salário mínimo cada e que não se casem nem tenham filhos, as rendas dos dois filhos ajudarão a pagar o que não se quita nem no longo prazo, o que é vitalício, anual, recorrente: as despesas do apartamento (água, luz, gás, seguro, telefonia, conexão de Internet, TV por satélite), o imposto predial, a contribuição condominial.

A renda remanescente poderá enfim bancar o grande sonho da família: uma casa de praia.

Manifesto contra o “e/ou”

Normalmente se explica o uso de “e/ou” com base na necessidade de expressar que algo pode ser só uma coisa, ou só outra coisa, ou ambas ao coisas simultaneamente. Um bom exemplo é o texto que a Wikipédia inclui nas páginas marcadas para revisão:

Esta página foi marcada para revisão, devido a inconsistências e/ou dados de confiabilidade duvidosa.

A página pode ter sido marcada para revisão só por causa da existência de inconsistências, ou só por causa da existência de dados de confiabilidade duvidosa, ou por causa da existência simultânea de inconsistências e de dados de confiabilidade duvidosa. Com o objetivo de prever todas essas possibilidades, a Wikipédia usou a expressão “e/ou”.

Esse argumento pode até explicar o uso de “e/ou”, mas não o justifica. “E/ou” tem um aspecto trágico que torna seu uso reprovável: pode gerar ambiguidade não intencional, uma dificuldade ou mesmo impossibilidade de interpretação.

A ambiguidade, quando intencional, pode ser linda. É recurso literário. Afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho com Escobar? Não há como saber. Ainda bem.

O problema é a ambiguidade não intencional e fora do contexto literário. No texto jurídico, por exemplo, ambiguidade não pode ter lugar.

Vamos supor que, ao redigir um contrato, as partes estabeleçam que a obrigação é “uma e/ou outra”. Se houver discussão judicial desse contrato, o credor argumentará que é a obrigação é “uma e outra”; o devedor, que é “uma ou outra”. O juiz, coitado, terá de decidir ou em favor de um ou de outro, porque as interpretações deles são logicamente irreconciliáveis. Não importa o que o juiz decida, nunca haverá certeza de qual seria a obrigação que as partes realmente pretenderam estabelecer. E isso só aconteceu porque não souberam redigi-la.

Ainda pior que a ambiguidade gerada pelo “e/ou” é sua falta de justificativa lógica e gramatical.

Meu dia será feliz se e somente se eu comer queijo doce de leite no café-da-manhã. Preciso comer queijo e doce de leite no café-da-manhã para ter um dia feliz. Se comer só queijo, ou se comer só doce de leite, não terei um dia feliz. O “e” exprime bem essa ideia de adição. A gramática lhe deu o nome feio de conjunção coordenativa copulativa.

Meu dia será feliz se e somente se eu comer ou queijo ou doce de leite no café-da-manhã. Aqui, a felicidade do meu dia fica condicionada ao consumo de um só desses itens no café-da-manhã. Se consumir queijo doce de leite, ponho tudo a perder (digamos, porque minha dieta vai para o espaço). O “ou… ou”, que é o responsável por indicar claramente que as alternativas são mutuamente exclusivas, recebe o nome feio de conjunção coordenativa disjuntiva exclusiva.

Meu dia será feliz se e somente se eu comer queijo ou doce de leite no café-da-manhãSe comer só queijo no café-da-manhã, serei feliz; se só doce de leite, também. E se comer os dois? De acordo com a lógica (dos matemáticos e dos gulosos), também. O “ou” usado na frase tem essa propriedade mágica de fazer com que as alternativas não se excluam mutuamente. Mesmo sendo mágico, esse “ou” foi punido com o nome feio de conjunção coordenativa disjuntiva inclusiva.

É nesse último caso que tende a surgir em alguns a tentação de usar “e/ou”. Como comentei logo no início do texto, o “e/ou” normalmente é empregado em situações em que pode ser uma coisa, ou outra coisa, ou ambas. Agora, por que usar “e/ou” se um simples “ou” exprime a mesma ideia, sem causar risco de ambiguidade?

“Mas um ‘ou’ não me parece suficiente para deixar claro que a felicidade do meu dia está garantida se no café-da-manhã eu comer só queijo ou só doce-de-leite, bem como se eu comer ambos”, diz o meu amigo excessivamente zeloso, e continua: “Nesse caso, não caberia usar um ‘e/ou’?” Minha resposta é, categoricamente, não, pelo risco de ambiguidade. Se o excesso de zelo requerer, sugiro o seguinte: Meu dia será feliz se e somente se eu comer queijo ou doce de leite, ou ambos, no café-da-manhãAplaquei a necessidade de ser zeloso, mas, francamente, não melhorei em nada a frase com o acréscimo desse “ou ambos”. O “ou”, sozinho, bastava.

Mas o vício do “e/ou” é difundido e chega a produzir absurdos — “e/ous” usados para conectar ideias mutuamente exclusivas. Basta googlar por “responsabilidade solidária e/ou subsidiária” e perceber que há resultados, quando não deveria haver. No Direito, a responsabilidade pode ser ou solidária ou subsidiária; não pode ser solidária subsidiária ao mesmo tempo.

Lógica, gramática e glutonaria à parte, concluo com mais alguns argumentos contra o “e/ou” (todos começando com a letra “e”, só porque me deu na telha):

  • Estética ou estilo: “E/ou” é deselegante. “Essa é a tua opinião”, diz meu amigo que leva tudo para o lado pessoal. Pode ser, mas não estou sozinho. Um número significativo de manuais de estilo e redação desaconselha o uso do “e/ou” justamente por ser deselegante e confuso.
  • Economia: Se em vez de cada “e/ou” que escrevi neste texto até aqui eu tivesse usado apenas “ou” (o que, conforme demonstrei, teria sido suficiente), teria economizado minha energia de digitar 30 caracteres e tua energia de ler 30 caracteres. A economia é significativa. E isso que só tratei de economia de energia.
  • Esmero na escrita: Se usei “e/ou”, é provável que tenha sido por ficar em dúvida entre “e” e “ou”, seja por não saber exatamente a ideia que queria expressar, seja por não querer parar para pensar sobre qual conjunção usar. Ora, se não sabia o que queria escrever, ou se tive preguiça de pensar antes de escrever, provavelmente não deveria ter escrito nada.