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Eu quero um contrato

A Maria* veio aqui em casa na sexta-feira para fazer a sua mágica, como costumo dizer. Em três ou quatro horas ela tira o pó, passa aspirador, lava alguma roupa ou louça de que eu não tenha dado conta durante a semana, troca roupas de cama e toalhas. Ela vem rapidinho, faz um café preto forte pra si (e pra mim também, claro, quando estou em casa), fica ouvindo música. Enquanto isso, vai deixando o apartamento todo (ainda mais) limpo, cheiroso e organizado.

Para ressaltar a importância da Maria, bastaria dizer que ela deixa o parquet brilhoso. Quem me conhece – e ainda mais quem já me visitou e conhece minha única regra para entrar aqui: tirar o calçado de rua e colocar chinelinhas de andar em casa – sabe quão neuroticamente importante para mim esse bendito parquet estar bem cuidado e brilhoso. A Maria vem e deixa o parquet brilhoso. Ou seja, é praticamente assim uma Santa Maria.

Não sou bagunceiro e até que sou bem limpinho, então às vezes dou conta sozinho por aqui. Mas a bem da verdade não gosto de fazer isso. Sem querer soar esnobe, não preciso fazer isso. Os honorários da Maria são razoáveis e eu não me importo de pagá-los; aliás, gosto de pedir que ela venha. Além de fazer um bom serviço, ela é uma pessoa do bem. Trabalha muito: três ou quatro faxinas por dia, mais um emprego à noite, lavando louça num restaurante. É humilde e tem uns quantos filhos. Ela escreve (às vezes me deixa uma lista com o que falta de material de limpeza), acho que bastante bem, mas se vê que não teve oportunidade de estudar muito. Conta com que seus “patrões”, como ela diz, continuem contando com ela.

Tem vezes que a Maria gosta de conversar. Se estou trabalhando, nem sempre posso dar muito papo. (Ha! Agora me lembro de que uma vez ela veio e eu estava em casa porque tinha tirado um siso; o motivo de eu não poder falar, nesse caso, era outro.) Na sexta-feira, quando ela estava terminando o serviço dela, eu já tinha terminado o meu dia de trabalho, então ainda pudemos conversar. Ela me contou que mandou trocar o telhado da casa dela.

– Ah, estava precisando trocar. Aí eu pedi um orçamento para o senhor que ia fazer a obra. Ele não quis me fazer um orçamento pelo serviço todo. Quis cobrar por dia. Eu não gostei muito. Cem reais por dia, pra ele e pro ajudante. Prometeu levar uns dois ou três dias. Mas eu sou pobre, né, seu Martin. E se ele começa a enrolar ou demorar, sei lá, e acaba levando uns sete dias? Eu não teria esse dinheiro todo pra pagar pra ele. Ah, seu Martin, então sabe o que eu fiz?

– O que, Maria? – eu estava genuinamente interessado!

– Pedi pra fazer um contrato com ele.

contrato

O meu rosto se iluminou. A Maria tinha acabado de ganhar minha total atenção. Continuou:

– Coloquei assim no papel: “Eu, Maria, estou fazendo um contrato com o senhor Fulano, para trocar meu telhado…” Ele não gostou muito. Ficou me perguntando, “mas isso vai complicar minha vida; a senhora não vai ficar dizendo por aí que fez contrato comigo, né?” Então eu disse pra ele, “olha, o que importa é que sem contrato eu não faço”. Ah, seu Martin, empresa grande faz a gente assinar contrato pra tudo; por que eu não posso fazer também, pra me sentir segura, pra não me passarem pra trás? Então eu fiz contrato. E ele terminou em dois dias.

Claro que encorajei a Maria.

– Tem que fazer contrato, mesmo. Acho ótimo. Não tem nada de mal nem de errado nisso.

Fiquei pensando em quanta energia já despendi em vão (profissionalmente e também em círculos familiares) orientando gente com educação superior a fazer contrato – para fixar preço, cronograma, multa por atraso etc. – e afinal vi tudo feito no fio do bigode; e mais tarde o orçamento foi excedido ou o cronograma, atrasado; e ainda mais tarde me vieram pedir ajuda. Até ajudo (nem tudo está perdido; contrato verbal também é contrato), mas primeiro vão me ouvir dizer: “bom, eu avisei.” Também me lembrei da série de posts sobre negociação, revisão e redação de contratos, que escrevi um tempo atrás.

A história do contrato da Maria me sinaliza esperança, uma luz no fim do túnel. Uma brasileira trabalhadora, mesmo com poucos recursos e limitada educação formal, não se acanha de usar as ferramentas jurídicas e econômicas que conhece e tem à disposição. Pouco importa a forma humilde (“Eu, Maria, estou fazendo um contrato…”). O que importa é a mensagem, que a Maria conseguiu transmitir muito bem para o senhor Fulano e que no Brasil precisamos transmitir todos os dias: estamos cansados de ser passados pra trás.

* O nome dela não é Maria, claro. Mas a quem quiser recomendação de diarista em Porto Alegre eu, com gosto, repasso o nome e o telefone dela.