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Eu quero um contrato

A Maria* veio aqui em casa na sexta-feira para fazer a sua mágica, como costumo dizer. Em três ou quatro horas ela tira o pó, passa aspirador, lava alguma roupa ou louça de que eu não tenha dado conta durante a semana, troca roupas de cama e toalhas. Ela vem rapidinho, faz um café preto forte pra si (e pra mim também, claro, quando estou em casa), fica ouvindo música. Enquanto isso, vai deixando o apartamento todo (ainda mais) limpo, cheiroso e organizado.

Para ressaltar a importância da Maria, bastaria dizer que ela deixa o parquet brilhoso. Quem me conhece – e ainda mais quem já me visitou e conhece minha única regra para entrar aqui: tirar o calçado de rua e colocar chinelinhas de andar em casa – sabe quão neuroticamente importante para mim esse bendito parquet estar bem cuidado e brilhoso. A Maria vem e deixa o parquet brilhoso. Ou seja, é praticamente assim uma Santa Maria.

Não sou bagunceiro e até que sou bem limpinho, então às vezes dou conta sozinho por aqui. Mas a bem da verdade não gosto de fazer isso. Sem querer soar esnobe, não preciso fazer isso. Os honorários da Maria são razoáveis e eu não me importo de pagá-los; aliás, gosto de pedir que ela venha. Além de fazer um bom serviço, ela é uma pessoa do bem. Trabalha muito: três ou quatro faxinas por dia, mais um emprego à noite, lavando louça num restaurante. É humilde e tem uns quantos filhos. Ela escreve (às vezes me deixa uma lista com o que falta de material de limpeza), acho que bastante bem, mas se vê que não teve oportunidade de estudar muito. Conta com que seus “patrões”, como ela diz, continuem contando com ela.

Tem vezes que a Maria gosta de conversar. Se estou trabalhando, nem sempre posso dar muito papo. (Ha! Agora me lembro de que uma vez ela veio e eu estava em casa porque tinha tirado um siso; o motivo de eu não poder falar, nesse caso, era outro.) Na sexta-feira, quando ela estava terminando o serviço dela, eu já tinha terminado o meu dia de trabalho, então ainda pudemos conversar. Ela me contou que mandou trocar o telhado da casa dela.

– Ah, estava precisando trocar. Aí eu pedi um orçamento para o senhor que ia fazer a obra. Ele não quis me fazer um orçamento pelo serviço todo. Quis cobrar por dia. Eu não gostei muito. Cem reais por dia, pra ele e pro ajudante. Prometeu levar uns dois ou três dias. Mas eu sou pobre, né, seu Martin. E se ele começa a enrolar ou demorar, sei lá, e acaba levando uns sete dias? Eu não teria esse dinheiro todo pra pagar pra ele. Ah, seu Martin, então sabe o que eu fiz?

– O que, Maria? – eu estava genuinamente interessado!

– Pedi pra fazer um contrato com ele.

contrato

O meu rosto se iluminou. A Maria tinha acabado de ganhar minha total atenção. Continuou:

– Coloquei assim no papel: “Eu, Maria, estou fazendo um contrato com o senhor Fulano, para trocar meu telhado…” Ele não gostou muito. Ficou me perguntando, “mas isso vai complicar minha vida; a senhora não vai ficar dizendo por aí que fez contrato comigo, né?” Então eu disse pra ele, “olha, o que importa é que sem contrato eu não faço”. Ah, seu Martin, empresa grande faz a gente assinar contrato pra tudo; por que eu não posso fazer também, pra me sentir segura, pra não me passarem pra trás? Então eu fiz contrato. E ele terminou em dois dias.

Claro que encorajei a Maria.

– Tem que fazer contrato, mesmo. Acho ótimo. Não tem nada de mal nem de errado nisso.

Fiquei pensando em quanta energia já despendi em vão (profissionalmente e também em círculos familiares) orientando gente com educação superior a fazer contrato – para fixar preço, cronograma, multa por atraso etc. – e afinal vi tudo feito no fio do bigode; e mais tarde o orçamento foi excedido ou o cronograma, atrasado; e ainda mais tarde me vieram pedir ajuda. Até ajudo (nem tudo está perdido; contrato verbal também é contrato), mas primeiro vão me ouvir dizer: “bom, eu avisei.” Também me lembrei da série de posts sobre negociação, revisão e redação de contratos, que escrevi um tempo atrás.

A história do contrato da Maria me sinaliza esperança, uma luz no fim do túnel. Uma brasileira trabalhadora, mesmo com poucos recursos e limitada educação formal, não se acanha de usar as ferramentas jurídicas e econômicas que conhece e tem à disposição. Pouco importa a forma humilde (“Eu, Maria, estou fazendo um contrato…”). O que importa é a mensagem, que a Maria conseguiu transmitir muito bem para o senhor Fulano e que no Brasil precisamos transmitir todos os dias: estamos cansados de ser passados pra trás.

* O nome dela não é Maria, claro. Mas a quem quiser recomendação de diarista em Porto Alegre eu, com gosto, repasso o nome e o telefone dela.

O cúmulo da concisão

No texto mais recente da série sobre negociação, revisão e redação de contratos, tratei de cuidados na redação contratual – entre eles, a concisão. Para ilustrar, fiz um exercício de cortar palavras desnecessárias, demonstrando que era possível reescrever uma cláusula contratual de 31 palavras usando apenas 15, menos da metade, sem perder substância.

Fiz exercícios práticos desses com estagiários que já trabalharam comigo, para incentivá-los a deixar de lado o juridiquês e focar na concisão. O amigo Pedro Bertuol, hoje advogado, foi uma das cobaias-vítimas desses meus exercícios. E funcionou, porque ele comentou comigo que gostou do texto que mencionei acima. Bem, eu disse a ele que isso ele deveria ter comentado no próprio site. 😉

Também contou que se lembrou do texto quando analisou uma cláusula contratual, que (com a licença dele!) vou usar aqui para um novo e chocante exercício de concisão, usando a mesma técnica do texto anterior:

São obrigações da contratante, sem prejuízo de outras previstas neste contrato, cumprir as obrigações a si atribuídas pelo presente instrumento.

Começamos com 20 palavras. Antes do exercício de cortar palavras, corrijo a concordência. “São obrigações … cumprir” não funciona. Deveria ser:

São obrigações É obrigação da contratante, sem prejuízo de outras previstas neste contrato, cumprir as obrigações a si atribuídas pelo presente instrumento.

Agora, simplifico a estrutura: “sujeito + verbo + objetos e complementos”:

Cumprir as obrigações a si atribuídas pelo presente instrumento é É obrigação da contratante, sem prejuízo de outras previstas neste contrato, cumprir as obrigações a si atribuídas pelo presente instrumento.

Verbos de ação funcionam melhor que verbos de ligação. Por isso, em vez de dizer que “x é obrigação da contratante”, melhor dizer que “a contratante fará x“. Assim:

A contratante cumprirá Cumprir as obrigações a si atribuídas pelo presente instrumento é obrigação da contratante, sem prejuízo de outras previstas neste contrato.

“Presente instrumento” e “este contrato” significam a mesma coisa. Exemplificam a chamada variação elegante, usada para evitar repetições. Parece estranha uma referência repetitiva dentro da mesma cláusula. Será que essa referência não poderia ser condensada? Usar a mesma expressão pode ajudar nessa condensação:

A contratante cumprirá as obrigações a si atribuídas pelo presente instrumento por este contrato, sem prejuízo de outras previstas neste contrato.

Fazer “sem prejuízo de y” significa fazer “y“. Portanto:

A contratante cumprirá as obrigações a si atribuídas por este contrato, sem prejuízo de e outras previstas neste contrato.

Aqui ocorre um fenômeno interessante. A redação atual da cláusula personifica o contrato, que atribui certas obrigações à contratante. Não seria mais preciso dizer que é a própria contratante (sujeito de Direito) que se obriga ou assume obrigações?

A contratante cumprirá as obrigações a si atribuídas por que assume neste contrato e outras previstas neste contrato.

Outro fenômeno interessante: a contratante terá de cumprir obrigações que assume e também “outras [obrigações] previstas no contrato”. Se “outras obrigações são previstas” no contrato (voz passiva), quem as previu? As partes que negociaram o contrato. A “contratante” é uma delas. Se “obrigações são previstas” no contrato e a contratante assina o contrato, ela mesma se obriga, assume as obrigações previstas. Portanto:

A contratante cumprirá as obrigações que assume neste contrato e outras previstas neste contrato.

O golpe final de concisão é o seguinte: se a contratante assume obrigações no contrato, qual é o propósito de uma cláusula contratual que prevê a obrigação da contratante de cumprir essas obrigações? Ao assumir as obrigações, a contratante já se obriga a cumpri-las.

Assim, a melhor redação daquela cláusula que originalmente tinha 20 palavras, depois de pensar nela criticamente e reescrevê-la de olho na concisão, só pode ser a seguinte:

A contratante cumprirá as obrigações que assume neste contrato.

Basta saber Direito para redigir um contrato?

Nesta série de textos sobre negociação, revisão e redação de contratos, já tratei da importância de ficar amigo do editor de texto, refletir sobre aspectos relevantes da negociação de contratos e reconhecer a importância de saber Direito para redigir um contrato. Hoje trato de cuidados ao redigir o texto do contrato.

Começo por uma regra de ouro de Deirdre McCloskey, uma economista que tem uma história de vida incrível e cujas ideias sobre redação me influenciam muito:

Clareza é uma questão social, não algo a ser decidido unilateralmente por quem escreve. O leitor, como o consumidor, é soberano. Se o leitor acha que o que tu escreveste não está claro, então não está, por definição. Desiste de discutir. (Economical Writing, p. 12)

Clareza num contrato, documento que objetiva produzir consequências jurídicas, tem importância fundamental. Num contrato, os “consumidores soberanos” são os próprios contratantes. Se para um dos contratantes o texto está claro e, para outro, confuso, não é que um seja mais inteligente ou perspicaz que o outro. É porque o contrato não está claro, só isso! E se nem mesmo um contratante acha que o contrato está claro, o documento não serve como contrato. Precisa ser reescrito, total ou parcialmente.

Clareza resume as dicas seguintes: de um jeito ou de outro, é o objetivo de todas. Mesmo assim, vale exemplificar formas de alcançar (mais) clareza:

  • Se o contrato for em língua portuguesa, escreve em língua portuguesa. Não em latim, nem em língua inglesa, muito menos em juridiquês.

Se uma expressão latina (dessas que tipicamente se usam no meio jurídico, como “pro rata die“) causar confusão e tiver equivalente em língua portuguesa (por exemplo, “proporcionalmente ao número de dias”), melhor substituir pela equivalente. Aliás, melhor evitar a expressão latina de início.

Usa expressões em língua inglesa ou outras línguas estrangeiras modernas, mas somente quando for necessário ou para evitar o ridículo. Por exemplo: “site” de Internet, no Brasil, é “site”. Bem que tentaram impor o “sítio”. Não funciona. Ninguém fala assim. Não aparece “site” no teu dicionário preferido? O problema pode ser tua preferência ou teu dicionário, mas não a palavra “site”.

Juridiquês? Qual a finalidade: restringir a compreensão do contrato ao mundo jurídico? Preciso ficar fazendo mais perguntas para demonstrar ironicamente que juridiquês não faz sentido e é contrário ao ideal de clareza? Ou posso parar? Agora bem sério: cuidado para não confundir juridiquês com jargão jurídico. Juridiquês é pedantismo, mas jargão é importante, no Direito como em qualquer outra área, para garantir precisão técnica.

  • Aproveitando a deixa: escreve com precisão técnica. A palavra escolhida pode ter consequências relevantes no mundo do Direito. “Marca” remete à Lei de Propriedade Industrial, “locação não residencial” remete à Lei de Locações (ou Lei do Inquilinato), e assim por diante. Usar no contrato palavras que remetam a conceitos legais ajuda a garantir que o contrato produza os efeitos desejados.

Ainda quanto à precisão técnica, vale lembrar outra dica de McCloskey (p. 56): evitar a “variação elegante”, ou seja, o uso de palavras diferentes com o mesmo significado, só para evitar repetições. Num contrato, esse tipo de variação pode até ser elegante aos olhos de alguns, mas é abominável porque gera ambiguidade. Num contrato de compra e venda de “relógios”, não há por que se referir ao conjunto de relógios como “os bens objeto deste contrato” numa cláusula, “bens móveis” em outra, “produtos” em outra, “mercadorias” em outra. Consistência: são “relógios”. Pronto.

  • “Usa verbos, na voz ativa” também é uma dica de McCloskey (p. 70) facilmente transponível à redação contratual.

Primeiro, “usa verbos”. Verbos (especialmente os de ação) tendem a ser mais fluidos e agradáveis que substantivos. A “preparação de dicas para a redação de contratos” é bem mais enrolada que “preparar dicas para redigir contratos”.

Segundo, usa verbos “na voz ativa”. “O registro será feito…”, “a mercadoria será entregue…”, e por aí vai. Quem fará o registro? Quem entregará a mercadoria? Usar a voz passiva pode gerar dúvidas se a obrigação é de um contratante, de outro, de um terceiro, de todos os anteriores, de nenhum deles. A estrutura “sujeito + verbo + objetos e complementos” oferece mais clareza.

  • Por fim, concisãoNada melhor que um exemplo-exercício (absurdo, bobo e exagerado, mas ilustrativo do que aparece por aí): “Na hipótese de que a Cicrano venha a ganhar na Mega-Sena, fica expressamente acordado pelas partes que o imóvel da Rua dos Bobos será vendido pelo Proprietário Fulano ao Locatário Beltrano.”

“Na hipótese de que Cicrano venha a ganhar na Mega-Sena” é uma condição. Dó, ré, mi, fá, sol, lá… o que mesmo indica condição? “Se”! Em vez de “na hipótese de que”, podemos usar, simplesmente, se Cicrano vier a ganhar na Mega-Sena”.

Mais: podemos resumir “vier a ganhar” para “ganhar”, sem perder nada (antítese intencional!) no significado. A condição fica: “Se Cicrano ganhar na Mega-Sena”.

“Fica expressamente acordado pelas partes que”: Tudo o que está escrito no contrato está expressamente acordado, e obviamente pelas partes (quem não é contratante não concordou com nada). Dizer que essa fórmula é necessária em apenas uma ou em algumas das cláusulas do contrato implica admitir que as outras cláusulas não foram expressamente acordadas, o que não faz sentido. Corta sem piedade.

Ficamos com “O imóvel da Rua dos Bobos será vendido pelo Proprietário Fulano ao Locatário Beltrano”. Mas “Proprietário” e “Locatário” não fazem falta. Corta.

Ficamos com “O imóvel da Rua dos Bobos será vendido pelo Fulano ao Beltrano”. Usando voz ativa, ficamos com “Fulano venderá o imóvel da Rua dos Bobos a Beltrano”, a boa e velha – e concisa – estrutura “sujeito + verbo + objetos e complementos”.

Antes: “Na hipótese de que a Cicrano venha a ganhar na Mega-Sena, fica expressamente acordado pelas partes que o imóvel da Rua dos Bobos será vendido pelo Proprietário Fulano ao Locatário Beltrano.”

Depois: “Se Cicrano ganhar na Mega-Sena, Fulano venderá o imóvel da Rua dos Bobos a Beltrano.”

De 31 palavras no Antes, chegamos a 15 no Depois. Na mágica de editar para tornar conciso, cortamos mais da metade do conteúdo sem perder nada de conteúdo.

Como redigir um contrato sem saber Direito?

No primeiro texto desta série sobre negociação, revisão e redação de contratos, comentei que cada um de nós, mesmo sem formação jurídica, negociará ou revisará um contrato em algum momento da vida. Porque, afinal, “viver é contratar”. (Forcei a barra?)

No segundo texto, tratei da importância de conhecer o editor de texto e usar as ferramentas que ele disponibiliza, tanto para preparar quanto para revisar ou negociar um contrato. Dei dicas de formatação que valem para advogados e não advogados.

Comecei o terceiro texto com uma provocação: Como negociar um contrato sem saber Direito? Meu argumento é que negociar um contrato não precisa ser motivo de pânico, mesmo para quem não tem formação em Direito. Dei dicas válidas para todos os públicos.

O foco do texto de hoje é a redação contratual. Começando também com uma provocação: Como redigir um contrato sem saber Direito? Sem saber Direito, negociar um contrato pode ser difícil, mas é viável; redigir um contrato pode ser viável, mas é difícil. (Sutil a diferença?)

A atividade econômica exige que todos possam redigir contratos, assim como revisá-los e negociá-los. O Estatuto da OAB não inclui a redação contratual expressamente na lista de atividades privativas de advogado. Entendo que não poderia ser diferente. Há Projeto de Lei na Câmara dos Deputados que pretende incluir nessa lista o “assessoramento jurídico em contratos e acordos extrajudiciais”. Mesmo que o projeto seja aprovado, o que seria privativo seria o assessoramento jurídico quanto aos contratos, e não a redação deles.

Sem exagero, redigir um contrato sem saber Direito é tão difícil quanto opinar sobre o tratamento médico adequado sem ter estudado Medicina, ou quanto elaborar um projeto de engenharia sem ter estudado Engenharia. Felizmente para a qualidade dos tratamentos médicos, é preciso estudar Medicina e ser inscrito no Conselho Regional de Medicina para prescrever tratamentos médicos. Felizmente para a qualidade das obras de engenharia, é preciso estudar Engenharia e ser inscrito no Conselho Regional de Engenharia e Agronomia para assinar projetos de engenharia. Qualquer um pode opinar sobre tratamento médico e elaborar projeto de engenharia, informalmente, mas só médico pode prescrever tratamento médico e só engenheiro pode assinar projeto de engenharia, legalmente.

Existem motivos (além de uma intenção de reservar mercado!) por que só médicos e engenheiros podem atuar nas suas respectivas áreas. Tanto médicos quanto engenheiros têm conhecimento acadêmico e treinamento específicos, além de responsabilidade profissional pelo que fazem. No caso dos médicos, isso importa para a segurança dos pacientes; no dos engenheiros, para a segurança das obras de engenharia. 

Contratos redigidos por advogados têm benefícios análogos. Escritos por pessoas com conhecimento acadêmico e treinamento específicos, serão produtos intelectuais de mais qualidade. Os advogados têm responsabilidade profissional pelo trabalho jurídico que desempenham e, por meio dele, podem oferecer mais segurança jurídica a seus clientes.

Como negociar um contrato sem saber Direito?

Como comentei no primeiro texto desta série, cada um de nós, mesmo sem formação jurídica, precisará negociar um contrato em algum momento. Essa necessidade pode angustiar quem não tem formação em Direito, mas não há motivo para pânico. Compilei cinco dicas:

1)

A primeira é bastante óbvia, mas não por isso poderia ser dispensada: sabe aquilo de “não sou advogado, não vou entender, não adianta nem ler”? Nem pensar. Lê todo o contrato.

2)

Se estiveres diante de um contrato proposto de forma unilateral e padronizada pelo outro contratante, que não te dá chance de discutir ou modificar qualquer aspecto substancial, estás diante de um contrato por adesão. Nesse caso, resta identificar os riscos de contratar, ou pedir a um advogado que os identifique, sem pretensão de alterar o texto. (Pode acreditar: a operadora de telefonia celular não vai mudar seu contrato-padrão só porque estás pedindo.)

Se os riscos forem excessivamente altos, talvez o mercado ofereça alternativas. E se decidires assumir os riscos, tens a vantagem de que, em caso de problemas posteriores, o contrato será interpretado de forma mais favorável a ti. Essa interpretação mais favorável é garantida por lei.

3)

Uma coisa é a necessidade de um padrão. Por exemplo, é difícil imaginar uma operadora de telefonia (ela de novo) personalizar profundamente os contratos que tiver com cada usuário. A gestão contratual ficaria inviável. O serviço de telefonia varia entre os usuários, mas nem tanto.

Outra coisa bem diferente é a conveniência de um padrãoPara a gestão contratual de uma imobiliária, por exemplo, pode ser conveniente usar um mesmo modelo para todos os contratos. Porém, isso não quer dizer que a atividade da imobiliária imponha a necessidade de padronizar. Cada locação tem especificidades que dependem do imóvel, do locador, do inquilino. Nesse contexto, até faz mais sentido personalizar que padronizar.

Dessa forma, ao receberes um contrato “inalterável”, identifica se há real necessidade ou apenas conveniência de padronização. Se te enviarem uma primeira minuta contratual já em formato não editável (por exemplo, PDF), dizendo que não serão aceitas alterações “porque o contrato é padrão” ou “porque é gerado pelo sistema”, desconfia e questiona. É assim porque precisa ser, ou porque não estão dispostos a negociar? Pede uma minuta editável.

Se notares resistência, pensa se queres mesmo estabelecer uma relação contratual com um contratante inflexível, que te trata como número e não como parceiro. Talvez consigas encontrar alguém mais disposto a negociar e preparar um contrato que atenda tanto aos interesses dele quanto aos teus. Não há arrogância em querer ser tratado como VIP. Todos merecemos isso.

4)

Contratos são documentos importantes no mundo jurídico, porque criam direitos e obrigações. Os advogados que os elaboram empregam certos termos técnicos do Direito. Tudo certo e normal.

Porém, um contrato que só alguém com formação jurídica consegue entender tem algo de errado e anormal. Lembrando a primeira regra de ouro de Deirdre McCloskey, se um texto não está claro, a culpa é de quem o escreveu, nunca do leitor. Portanto, busca esclarecer o que está difícil de entender, corrigir erros e ambiguidades, equilibrar direitos e obrigações.

5)

Ao pedir auxílio jurídico quanto a um contrato, identifica o que é jurídico e o que é negocial. Teu advogado pode indicar o limite máximo de uma multa contratual, com base na lei e nas decisões judiciais, e talvez queira até opinar – mas não necessariamente queira sugerir ou decidir se haverá uma multa contratual no teu contrato e de quanto será. Ele poderá te ajudar a identificar os riscos da contratação – mas não necessariamente queira opinar ou te influenciar quanto a assumir ou não esses riscos. Enfim: teu advogado pode ajudar com questões jurídicas em um contrato, mas em regra as decisões negociais cabem a ti, como dono do negócio.

O editor de texto é teu amigo

Estejas escrevendo uma minuta de contrato a partir de uma folha em branco ou revisando uma preparada pela pessoa com quem vais contratar, um aspecto é essencial: precisas conhecer bem teu editor de texto e usar as ferramentas que ele disponibiliza:

  • Se estiveres na pele de revisor, usa controle de alterações. Assim, sinalizas tua intenção de negociar de boa-fé e com transparência, sem alterar sorrateiramente a minuta para passar o outro contratante para trás. Lembrete básico: sem um mínimo de confiança não há contrato.
  • Se te couber preparar a primeira minuta, pede ao outro contratante que, ao revisá-la, use controle de alterações. Se ele não o fizer (por não saber ou, cuidado!, por não querer ser transparente), podes fazer isso por ele: quando te devolver a minuta alterada, usa a comparação de documentos para compará-la com a minuta inicial.
  • Usa comentários para esclarecimentos ou questionamentos sobre pontos específicos da minuta (palavras, expressões, cláusulas). Inserir esses esclarecimentos ou questionamentos ao longo do texto – por exemplo, EM LETRAS TODAS MAIÚSCULAS, ou em fonte de outra cor, ou em negrito, itálico e sublinhado – é confuso, trabalhoso e um pouco histérico. Se há uma ferramenta específica e automática para comentários, por que não usá-la?
  • Forma é importante: não é perfumaria. É preciso pensar em legibilidade, para viabilizar a leitura fluida do contrato. Para isso, usa fontes não muito heterodoxas, como Arial e Times New Roman, que são de fácil leitura e certamente estarão no computador do outro contratante. Usa tamanhos de fonte razoáveis, entre 10 e 12 pontos, para o texto (se for um contrato regido pelo Direito do Consumidor, não há opção: precisa ter 12 pontos!). Pensa num espaçamento entre linhas que te pareça confortável: para mim, espaço simples é pouco, mas duplo é muito. As margens da página também devem ser razoáveis (não muito grandes nem muito pequenas) e equilibradas; melhor se todas (superior, inferior, direita e esquerda) forem iguais (2 cm, 1 polegada = 2,54 cm, ou 3 cm).
  • Forma é importante, mas conteúdo é muito mais, certo? Por isso, automatiza tanto quanto possível a formatação da minuta, para ter mais tempo de pensar no conteúdo. Uma forma interessante de fazer isso é criar um modelo com estilos diferentes para títulos de cláusulas, textos de cláusulas, textos de subcláusulas etc.
  • Uma cláusula com título “CLÁUSULA VINTE E CINCO – DA MULTA” tem exatamente o mesmo valor jurídico de uma com título “25 [tabulação] MULTA“. Há quem diga que a primeira forma é mais clássica e, por isso, mais bonita. Eu, que sou superclássico em muito ou quase tudo, discordo: recomendo a segunda, por ser mais objetiva, legível e funcional. Imagina se algum dos contratantes inventa, em algum momento da negociação, de incluir uma cláusula antes dessa: a Cláusula Vinte e Cinco passará a ser Cláusula Vinte e Seis; a Cláusula Vinte e Seis passará a ser Cláusula Vinte e Sete… Quem tem tempo para ficar redigitando tudo isso?
  • Mais que objetividade nos títulos, recomendo numeração automática de cláusulas. Fez bem mais sentido usar um sistema numérico em níveis, como “11.1 1.1.1“, que um clássico “Cláusula Primeira ( = 1), Parágrafo Primeiro ( = 1.1), Alínea Primeira ( = 1.1.1)”. A numeração automática, além de ser mais objetiva e legível, é mais funcional: permite o uso dos itens numerados como indicadores, aos quais se podem fazer referências cruzadas. Essas ferramentas serão muito úteis em contratos longos, para garantir que referências como “nos termos da Cláusula 25” sejam automaticamente corrigidas para “nos termos da Cláusula 26” se uma cláusula for acrescentada antes da Cláusula 25, fazendo com que ela se torne 26.

Felizmente se foi a época em que contratos precisavam ser escritos à mão ou numa máquina de escrever. Editores de texto podem não ser tudo de bom, mas sem dúvida permitem tornar bem mais eficientes a negociação, revisão e redação de contratos. Não aproveitar esse ganho de eficiência é ser [relativamente] ineficiente. Desconhecimento das ferramentas não é desculpa, principalmente para o advogado: no mínimo, gera uma obrigação de aprender a usá-las – ou de retirar do currículo aquela linhazinha que diz “domínio de programas da suíte MS Office”.

Quem nunca assinou um contrato?

Depois de seis anos (regulares) de Bacharelado em Direito, dois de Especialização em Direito e um semestre de Mestrado em Direito, foi, acredita se quiseres, no segundo semestre do Mestrado que redigi pela primeira vez um contrato, avaliado por um professor, num contexto acadêmico.

É um pequeno ressentimento que tenho quanto à formação jurídica que tive na UFPEL. Lá fui bastante bem capacitado e avaliado quanto ao conhecimento teórico sobre o Direito. Porém, as aulas de prática jurídica enfatizavam apenas uma das competências necessárias ao advogado na área contenciosa: redigir peças processuais. A prática jurídica que tive lá abrangeu bem a prática processual, mas não a contratual, nem a societária, nem a consultiva.

A UFPEL não me ensinou a escrever um contrato, mas felizmente supri essa deficiência no Mestrado. Na NYU, fiz a disciplina de U.S. Legal Methodology (“Metodologia Jurídica dos EUA”, digamos assim), que abordou técnicas de mediação, de negociação e de redação de contratos e memorandos (para advogados ou clientes). Foi essencial para completar minha formação.

Há quase dois anos (16 de setembro de 2011) comecei a trabalhar na área contratual de um escritório de advocacia. Desde então, negociação, redação e revisão contratual fazem parte do meu cotidiano profissional. Não sou um veterano, claro. Mesmo assim, graças a essa experiência de dois anos e à minha formação acadêmica sólida, tenho senioridade (“ai, minhas juntas…”) suficiente para dar diversas dicas sobre contratos.

Acho que minhas dicas podem valer tanto para o advogado, esse (n)(p)obre profissional que faz contratos escritos sob encomenda, quanto para qualquer pessoa. Afinal, cada um de nós inevitavelmente se colocará em algum momento na pele de contratante, tendo de assinar um contrato de trabalho, de locação, de promessa de compra e venda, de prestação de serviço…

Por isso, vou publicar uma série de textos sobre negociação, revisão e redação de contratos.

Começando pela colocação mais básica possível, sem querer insultar a inteligência do leitor, “contrato” significa, em linhas bem gerais, “acordo de vontades”; normalmente se chega a esse acordo após a negociação de uma “minuta”, que é um rascunho inicial. Prometo que a frase anterior será a mais acadêmica desta série de textos: a partir do próximo, só considerações práticas sobre cuidados importantes na negociação, revisão e redação de um contrato.

Reclamar: vício ou virtude? (4) Ou ambos?

Uma de minhas mais trabalhosas e desafiantes atividades no escritório é aconselhar e auxiliar clientes estrangeiros na aquisição de imóveis rurais na Faixa de Fronteira – aquela faixa de 150 Km ao longo das fronteiras terrestres do Brasil. Antes de adquirir um imóvel na Faixa de Fronteira, o estrangeiro deve obter autorizações do Incra, do Conselho de Defesa Nacional e, em alguns casos, até do Congresso Nacional.

Os procedimentos para obter essas autorizações exigem um número significativo de documentos. Por exemplo, o estrangeiro precisa demonstrar que, com a aquisição dos imóveis, não se excederá o “limite de estrangeirização” do município onde se situam. A regra é que estrangeiros não podem ser donos de mais de 25% da área de um município; além disso, estrangeiros de mesma nacionalidade não podem ser donos de mais de 10% da área total do município.

Parece complicado, mas a mesma lei que criou essa regra passou a exigir dos Registros de Imóveis um “livro auxiliar” para registrar todas as aquisições de imóveis rurais por estrangeiros. Assim, o Registro tem condições de emitir certidão que indique a área rural total pertencente a estrangeiros naquele município e a discriminação dessa área por grupos de nacionalidade. Mais que isso, a requerimento de qualquer interessado, o Registro deve emitir essa certidão. É sua obrigação.

Em tese, tudo lógico, perfeito, funcional. Na prática… (Se todas as leis fossem cumpridas no Brasil, viveríamos num país muito melhor, sem necessidade de tantos advogados. Ou seja, num país melhor ainda.)

Na prática, há Registros de Imóveis que não mantêm atualizados os seus “livros auxiliares”, deixando de registrar neles as vendas de imóveis rurais a estrangeiros. Assim, as certidões que emitem com base nesses livros não corresondem à realidade.

Além disso, há o problema deixado pela onda de emancipações. Fica mais fácil explicar com um exemplo. Imagine o município hipotético de Budapeste, que em 1990 dividiu-se nos municípios de Buda e Peste. Apesar da divisão, subsistiu apenas um Registro de Imóveis em Buda, com abrangência sobre Buda e Peste. O Registro não atualizou seus livros (inclusive o “livro auxiliar”) após a divisão e não tem condições de informar quais áreas pertencentes a estrangeiros estão localizadas em Buda e quais estão localizadas em Peste. Tem o dever legal de informar, mas não informa. Para isso, o registrador deveria dar-se o trabalho de localizar quais áreas estão em Buda e quais estão em Peste.

Por um lado, as certidões emitidas por esses Registros de Imóveis quanto ao nível de estrangeirização do município são sabidamente incorretas. Por outro, as certidões têm fé pública – ou seja, o conteúdo delas presume-se verdadeiro.

Voltando aos procedimentos que conduzimos para os clientes, solicitamos em nome deles as certidões necessárias aos Registros. Sabemos que as certidões emitidas não correspondem à realidade. Os clientes também. Os registradores também. O Incra também – e reclamou. Solicitou que obtivéssemos certidões corretas.

Como solicitar aos Registros, “por favor, cumpram seu dever legal e emitam certidões que estejam atualizadas e cujo conteúdo corresponda à realidade”? Não sei, mas foi o que fizemos – polidamente solicitamos novamente aos Registros que fizessem de novo o que já tinham feito.

A resposta que esperamos é que os Registros atualizem seus “livros auxiliares” e emitam certidões corretas e atualizadas. Isso resolveria todos os nossos problemas – meus, do escritório, do cliente, do Incra. E todos se regozijariam.

Mas outra resposta plausível seria: “as certidões que emitimos estão atualizadas e correspondem à realidade”; ou seja, um carimbo de autenticidade em algo sabidamente falso. E o que fazer nesse caso?

Poderíamos argumentar ao Incra que, mesmo após nossa insistência, os Registros insistem no erro – mas isso não resolveria o problema, porque continuaríamos sem as certidões necessárias. Poderíamos reclamar à Corregedoria-Geral de Justiça gaúcha, para que compelisse o Registro a cumprir seu dever legal – e assim começaríamos uma bela inimizade com os registradores, de cujos serviços tanto necessitamos.

Nesse caso, reclamar é o correto e, ao mesmo tempo, um tiro no pé.

Reclamar: vício ou virtude? (2)

Saiu em uma edição do Diário Oficial da União uma publicação relevante quanto a um cliente do escritório. Tendo de apresentar a página dessa publicação à Junta Comercial gaúcha, fizemos o que normalmente se faz: imprimimos a página a partir do site da Imprensa Nacional. Cada página do Diário Oficial assim obtida vem com um código único, que permite a verificação da autenticidade.

Essa assinatura digital existe por força de lei (na verdade, da Medida Provisória, número 2.200-2 de 24/08/2001) e é amplamente usada e aceita. A Imprensa Nacional adverte: as publicações oficiais desde 1990 estão disponíveis no site, com certificação digital.

Porém, para nossa surpresa, a Junta Comercial inflexivelmente recusou o documento e exigiu original ou cópia autenticada do Diário Oficial impresso. “Queremos uma folha de papel jornal.” Solicitamos uma cópia autenticada da página relevante à Imprensa Nacional em Brasília: para nossa ainda maior surpresa (preconceito?!), foi fácil, ágil e barato.

Porém, para nossa enorme suspresa, a Imprensa Nacional nos enviou a mesma página que tínhamos imprimido originalmente a partir do site, mas com um simplório carimbo da Imprensa Nacional (“confere com o original”, ou algo assim) e a rubrica de um servidor público, sem reconhecimento de firma.

Esse carimbo e essa rubrica sem reconhecimento de firma pouco acrescentaram à autenticidade ou mesmo à aparência de autenticidade da (já suficientemente autêntica) página com autenticação digital. Mas era o tudo o que a Imprensa Nacional tinha a oferecer. “Não enviamos folha em papel jornal.” E foi o que apresentamos à Junta Comercial.

Porém, para nossa estapafurdiamente gigante surpresa (e com um tantinho de alegria pelo nosso cliente), a Junta Comercial aceitou aquilo que era uma folha impressa do site mais carimbo e rubrica.

Nessa história, talvez o mais irritante seja a recusa inicial da Junta em reconhecer autenticidade a um documento de autenticidade óbvia, legalmente exigível e amplamente aceita. Ou talvez seja o reconhecimento final, pela Junta, da autenticidade do segundo documento apresentado, pretensamente mais autêntico que o primeiro, mas, na verdade, igualmente autêntico. Ou talvez seja, simplesmente, a inconsistência e a arbitrariedade da Junta.

De qualquer forma, problema resolvido. Mas neste caso, desta vez. Sem termos manifestado nossa insatisfação com a recusa inicial indevida, não temos como garantir que a Junta se abstenha de repetir essa recusa indevida futuramente. Sem termos reclamado, só nos resta torcer que o absurdo não se repita.