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Miniversum e mais um gostinho (amargo) de comunismo

Miniversum (website em inglês, mapa), na Avenida Andrássy, é uma exibição de maquetes e miniaturas, principalmente de Budapeste e da Hungria, mas também com seções dedicadas à Áustria e à Alemanha. É legal para adultos, pela riqueza de detalhes e informação, e para crianças, pela interatividade – há botões que acionam sons, luzes e movimentos.

Há miniaturas perfeitas de muitos dos prédios importantes da cidade. Gostei especialmente de ver os detalhes dos edifícios que, no tumulto urbano, são difíceis de contemplar (por causa do trânsito, dos cabos de bonde, das árvores) – como é o caso da Estação Budapeste-Ocidente, conhecida simplesmente por Nyugati (Budapest-Nyugati pályaudvar, mapa).

Budapest-Nyugati pályaudvar no Miniversum

Como na série Expedição 2015 já publiquei muitas fotos dos próprios prédios, dedico o resto deste post à mostra A Vida sob o Comunismo (Life Under Communism) do Miniversum, que traz dez cenas e lugares da era comunista na Hungria.

A construção de moradias populares era dever do Estado durante a era comunista, e o ímpeto de industrialização levou a uma rápida urbanização. Cerca de 800.000 apartamentos de 30 a 70 metros quadrados foram construídos em materiais pré-fabricados, em prédios padronizados de quatro ou dez andares, além de escolas, centros comunitários etc. Cerca de um quinto da população da Hungria ainda vive nesses edifícios pré-fabricados. A população desses centros residenciais comprava os alimentos a baixo custo nas lojas ABC – como até hoje são conhecidos os mercadinhos e as lojas de conveniência em Budapeste!

Residências populares pré-fabricadas

No post sobre o Parque Memento incluí uma foto de um monumento aos Pioneiros, o movimento criado pelo Partido Comunista. Esse movimento estabeleceu diversos acampamentos de verão, onde a ideia era para doutrinar os jovens na ideologia soviética comunista, para torná-los fiéis ao partido. As crianças e jovens até queriam que esses retiros fossem férias, mas a disciplina era rígida. No auge do movimento, até 200.000 crianças e adolescentes participavam desses acampamentos por ano. Na prática, a participação era obrigatória para estudantes de 10 a 14 anos.

Acampamento do Movimento dos Pioneiros

Também no post sobre o Parque Memento há uma foto de uma estátua de Lênin colocada em frente a uma fábrica após uma “sugestão” de Khrushchev. Essa estátua ficava na entrada do distrito industrial Csepel, criado em 1892 numa área de 200 hectares não muito distante do centro de Budapeste.

Durante o regime comunista, 30.000 pessoas chegaram a trabalhar em Csepel na produção de máquinas, bicicletas e motocicletas para os países membros do Conselho para Assistência Econômica Mútua (Comecon), a organização econômica dos países do bloco comunista, que existiu de 1949 até 1991. Com a restauração do capitalismo, desapareceu o mercado para os produtos de baixa qualidade fabricados em Csepel. Por isso, hoje há apenas pequenas fábricas no velho complexo.

Csepel

O regime comunista na Hungria – como em diversos países soviéticos e em outros países comunistas até hoje – implantou o controle central da economia pelo Estado, sem considerar as circunstâncias de mercado. Abriram-se mineradoras inviáveis economicamente, com policiamento de uma milícia ligada ao Partido Comunista, para fornecer matéria-prima e energia para a indústria pesada criada artificialmente pelo Estado. Praticamente não havia desemprego – mas a produção era ineficiente e havia desperdício de recursos.

Modelo de mineradora da era comunista

Parque Memento: um dos melhores passeios em Budapeste

O Parque Memento (website em inglês, mapa) foi, de longe, um dos melhores passeios que fizemos durante a Expedição 2015 a Budapeste.

(E falando em longe… o parque fica bastante longe do centro da cidade; 30 a 40 minutos de ônibus. Minha irmã, meu cunhado e eu fomos de ônibus urbano, com uma conexão bem complicada – mas, pra facilitar, voltamos ao centro com o ônibus direto que liga o parque à Déak Ferenc tér, a estação que conecta as linhas M1, M2 e M3 do metrô. Vale reservar umas três horas para o passeio. E vale muito fazer a visita guiada – nossa guia foi excelente.)

Vamos ao parque. Mas, antes, aos antecedentes do parque!

Na Segunda Guerra, a Hungria estava do lado perdedor. O Exército Vermelho Soviético chegou para libertar os húngaros da tirania das forças alemãs nazistas. O Dia da Libertação, com ficou conhecido o 4 de abril de 1945, significava para a Hungria, a um só tempo, o fim dos horrores de um regime opressor, de uma Grande Guerra e da sombra do Holocausto.

Mas os libertadores soviéticos foram prolongando sua ocupação… e acabaram estabelecendo no país o regime comunista e uma ditadura totalitária, com mais opressão e estado de terror. E assim a Hungria continuava do lado perdedor.

De 1947 a 1988, o regime soviético espalhou pelas ruas e praças de Budapeste não só terror, mas também diversas estátuas e monumentos (muitos deles também aterrorizantes – e odiados pelo povo) em homenagem aos ideais comunistas e aos seus líderes.

Com o fim do regime comunista no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, antes que a população farta da ditadura destruísse os monumentos que o glorificavam, o governo de Budapeste decidiu removê-las e preservá-las em um parque memorial – o Parque Memento.

As botas de Stálin

Uma construção esquisita em frente ao parque (fora dele) – botas sobre um pedestal? – lembra que não se trata de uma homenagem ao comunismo, mas em homenagem à sua queda.

Nos primeiros anos da ditadura soviética, tinha sido instalado na praça Felvonulási tér – na parte sul do Parque da Cidade – um pedestal elevado e, sobre ele, uma estátua de bronze de 8 metros de altura de Josef Stálin, Primeiro Secretário do Partido Comunista, Chefe de Estado, General. Era diante desse pedestal e da estátua de Stálin que se realizavam as paradas militares organizadas pelos soviéticos.

Mas num levante civil húngaro contra a ditadura, em 23 de outubro de 1956, a multidão cortou a estátua pelas pernas, derrubando o corpo. Ficaram só as botas – um deboche ao ditador.

Infelizmente aquele 23 de outubro não foi o fim da ditadura. Os próprios comunistas removeram as botas e remodelaram o pedestal (sem repor a estátua). O que está em frente ao Parque Memento é uma réplica em tamanho real do pedestal e das botas de Stálin.

O portal do Parque Memento

Ákos Eleőd foi o arquiteto cujo projeto venceu o concurso para o desenho do parque, inaugurado em 1993. Seu projeto é rico em simbolismo, como ficará evidente em muitos dos comentários ao longo do texto. Foi intitulado “Uma Frase sobre Tirania”, em homenagem ao poema do húngaro Gyula Illyés; o poema está gravado na grande porta central do parque.

O imponente portal de tijolo à vista lembra elementos arquitetônicos muito usados pelos comunistas: formas clássicas, grandes colunas, alcovas em arco. O arquiteto usou esses elementos para representar o regime comunista, que, com mania de grandeza, esmagou as liberdades individuais e humilhou a população húngara.

O portal também representa a promessa vazia do comunismo. Apesar da imponência aparente, não há nada atrás, nenhum edifício. Só fachada.

A grande porta central (onde está gravado o poema) está, como na foto abaixo, sempre fechada. Para entrar, é preciso encontrar uma outra solução, uma porta lateral. É outra alusão do arquiteto à vida no regime comunista: “para cada grande porta existe uma pequena janela”.

Na parte esquerda do portal, está uma estátua de bronze de Lênin, outro líder do Partido Comunista na Rússia. A estátua de 4 metros de altura, esculpida por Pál Pátzay, ficava também na Felvonulási tér, próxima à estátua (e, depois, às botas) de Stálin.

Na parte direita do portal, fica uma estátua de 1971 do escultor György Segesdi, retratando Marx e Engels, teóricos alemães do comunismo. A tem 4,2 metros de altura e, originalmente, ficava perto da sede do Partido Comunista. É a única estátua cubista de Marx e Engels. O escultor queria construí-la com chapas de aço, mas os políticos da época insistiram no uso de um material mais pesado e tradicional – o granito.

Soldado Soviético Libertador

Entrando no parque, à direita, fica a estátua de bronze de 6 metros de altura do Soldado Soviético Libertador, esculpida por Zsigismond Strobl Kisfaludy, em 1947.

Essa estátua ficava numa posição extremamente privilegiada: no alto do Gellért Hill, aos pés do Monumento à Liberdade (na foto abaixo ainda se vê o pedestal onde ficava). Pretendia ser, por assim dizer, o “protetor soviético” do próprio espírito de liberdade!

Originalmente, o monumento em Gellért Hill era em homenagem à libertação da Hungria das forças alemãs nazistas pelo exército soviético. A inscrição no pedestal dizia: “à memória dos heróis soviéticos libertadores – a povo húngaro, com gratidão – 1945”.

O monumento acabou ficando lá e não sendo “condenado” ao Parque Memento porque ganhou novo significado. Hoje a inscrição diz: “à memória de todos aqueles que sacrificaram suas vidas pela independência, pela liberdade e pela prosperidade da Hungria”. Isso inclui os que sacrificaram suas vidas para livrar a Hungria dos soviéticos antes homenageados!

Memorial da Amizade Húngaro–Soviética

Essa estátua de bronze, esculpida em 1956 por Zsigismond Strobl Kisfaludy, tem traços que demonstram o desequilíbrio da amizade entre húngaros e soviéticos. O trabalhador húngaro, em vestimentas simples, oferece as duas mãos, em posição de subserviência; o soldado soviético, por sua vez, mais alto e forte, oferece apenas uma mão e mantém-se afastado.

Monumento aos Pioneiros

Para doutrinar as crianças na ideologia comunista e soviética, o Partido Comunista criou o Movimento dos Pioneiros, para crianças de 6 a 14 anos.

Estátua de Lênin

Nikita Khrushchev, Primeiro Secretário do Partido Comunista da Rússia, visitou a grande siderúrgica húngara Csepel em 1958. Durante a visita, comentou que deveria haver ali uma estátua que lembrasse os trabalhadores da ideologia comunista e os encorajasse ao trabalho. A “falha” foi corrigida rapidamente, e uma estátua de bronze de Lênin, com a mão elevada, foi instalada em frente à fábrica no mesmo ano.

Estrela vermelha de cinco pontas

A estrela vermelha de cinco pontas é um emblema do movimento internacional dos trabalhadores. Durante o regime comunista, foi colocada em prédios públicos civis e militares, fábricas, escolas, até mesmo no topo do Parlamento. No centro do Parque Memento, há uma estrela de flores, semelhante à que havia perto do marco zero de Budapeste, em Buda.

No Brasil, é o símbolo do Partido dos Trabalhadores (PT).

Na Hungria, com uma emenda de 1993 ao Código Criminal de 1993, chegou a ser crime o uso do símbolo – assim como o da suástica, da SS (a polícia nazista), a cruz flechada (símbolo do Partido da Cruz Flechada, o “primo húngaro” do Partido Nazi) e a “foice & martelo” (outro conhecido símbolo comunista – como o do Partido Comunista do Brasil, PCdoB).

A polêmica sobre essa proibição renderia outro post cheio de Direito… talvez ainda renda! Mas o resumo da situação é o seguinte…

Attila Vajnai, um membro do Partido dos Trabalhadores da Hungria, usou um broche da estrela vermelha de cinco pontas e foi multado pelo Judiciário Húngaro. Apelou à Corte Europeia de Direitos Humanos, que, em 2008, decidiu contra a Hungria. Para a Corte, a multa aplicada pela Hungria violava a liberdade de expressão.

Em virtude desse e de casos semelhantes, em 2013 a Corte Constitucional da Hungria declarou inconstitucional aquela norma do Código Criminal, entendendo que a proibição dos símbolos era muito ampla e imprecisa. E o uso dos símbolos voltou a ser permitido em maio de 2013.

Memorial do Movimento dos Trabalhadores

Esse monumento, construído por István Kiss em 1976 em placas de aço, representa a supostamente perfeita ideologia do movimento dos trabalhadores. As duas mãos protegem esse tesouro frágil e ao mesmo tempo o exibem a todos.

Monumento à República Soviética Húngara

Antes da Primeira Guerra, a Hungria fazia parte do Império Austro-Húngaro, que, perdedor, desmantelou-se. O fim da monarquia foi seguido de instabilidade política, econômica, social e de política externa. Em 21 de março de 1919, aproveitando-se dessa instabilidade, ativistas liderados por Béla Kun e inspirados na Revolução Russa proclamaram uma ditadura do proletariado e criaram a República Soviética Húngara. O regime durou apenas 133 dias.

Para homenagear essa (primeira) República Soviética Húngara, os soviéticos do regime comunista posterior à Segunda Guerra resgataram uma imagem usada em posters de 1919, a ilustração “Às Armas!”, de Róbert Berény.

O escultor István Kiss tornou essa ilustração tridimensional por meio de sua estátua de 1969, que ficava também na Felvonulási tér, próxima às estátuas de Lênin e Stálin.

A população de Budapeste não tardou a ridicularizar a estátua. Diziam que parecia um gigante que vinha correndo pelo meio do Parque da Cidade, passando por entre as copas das árvores e tentando chamar a atenção de alguém: “Ei, você esqueceu seu cachecol!

Por fim, a parede dos fundos do parque

As alusões geniais do arquiteto Ákos Eleőd à promessa ilusória, circular e vazia do comunismo estão por toda parte. Os caminhos internos do parque, que levam às estátuas, têm o formato do símbolo matemático do infinito (∞, um “8 deitado”). O centro desses “infinitos” é o centro do próprio parque, onde está a estrela de cinco pontas feita com flores vermelhas. E o caminho que fica no eixo central do parque, por sua vez, leva a uma parede nos fundos.

Encerro com uma citação do livro “Na Sombra das Botas de Stálin – Guia de Visitantes ao Parque Memento” (In the Shadow of Stalin’s Boots – Visitor’s guide to Memento Park), que – além das informações ensinadas pela excelente guia que nos acompanhou durante a visita – foi referência muito útil na preparação deste post:

Mas a estrada na qual o visitante tem caminhado só continua por mais alguns metros: de repente ela atinge a parede dos fundos. Daqui não se pode ir adiante; só se pode voltar. É um beco sem saída.