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Uma revolução redacional

Não pretendo em um só post recuperar o atraso do blog, mas desde já faço a advertência: isso pode muito bem acontecer. Este texto resulta de uma profunda reflexão que tenho feito desde que reli um livro realmente transformador: Economical Writing, da Dra. Deirdre McCloskey. Podes parar de bocejar: mesmo que Economia não seja tua praia, o livro tem muito mais de Writing que de Economical. Aliás, na minha opinião deveria chamar-se Academic Writing, ou, sem querer exagerar na abrangência, Writing.

A lição do livro serve para qualquer pessoa, já que escrever bem deveria ser o objetivo de qualquer pessoa. Tudo bem que o público-alvo é o escritor de língua inglesa, e que justamente por eu estar escrevendo um artigo em inglês ao ler o livro acabei aproveitando mais a lição, mas farei aqui apenas comentários que na minha opinião valem para qualquer idioma ou até, de novo sem querer exagerar na abrangência, em qualquer forma de comunicação.

“Escritores amadores acham que escrever é um traço de personalidade, e não uma habilidade.” (p. 1)

Já pensei assim, e talvez também penses. Mas vejamos: escrever não é simplesmente um dom que as pessoas têm. É muito mais transpiração (prática) do que inspiração (talento). É muito mais questão de ter conteúdo e vontade de exprimi-lo do que de ter uma capacidade extraordinária para expressar idéias por escrito. Todos somos falantes competentes da nossa língua. Às vezes o que nos falta para escrever bem é apenas um pouco de domínio sobre aspectos técnicos da língua escrita, e isso só a prática ensina.

“Escrever é pensar. Não aprendes os detalhes de um argumento até que o escrevas em detalhe, e em escrever os detalhes descobres falhas nos fundamentos.” (p. 7)

Fica até difícil comentar essa colocação, porque é auto-explicativa! Muito bem escrito e verdadeiro. Por esse e outros motivos eu digo que esse livro é o máximo!

“Diz o que que vais dizer; dize-o; e depois diz que o disseste.” (p. 11)

Enquanto McCloskey simplesmente abomina essa regra, nós a ouvimos até de professores de Língua Portuguesa ou Redação e de Metodologia da Pesquisa. Para constatar que muita gente leva essa regra a sério, basta ler alguns trabalhos científicos e até livros didáticos (mesmo de ensino superior). Há quem não se canse de repetir a mesma idéia expressa de outra forma. Alguns escritores têm prazer em dizer a mesma coisa em outras palavras. Só para garantir que o leitor entenda, reformulam frase após frase…

Pronto, pronto, já entendeste bem o que eu quero dizer: repetição cansa o leitor! Como é que tem gente que não se dá conta disso? Ah, se fosse só disso que não se dão conta… Tem tanto mais na escrita acadêmica que deveria ser repensado. Queres ver?

“Notas de rodapé são ninhos de pedantes. Uma nota de rotapé deveria ser subordinada. É por isso que está no pé da página.” (p. 48)

Tenho professores que amam tanto as notas de rodapé a ponto de dizer que é nelas que deve estar a contribuição principal do autor: no corpo do texto, caberia apenas fazer um “diálogo” com a literatura já existente sobre o tema. Isso não faz o menor sentido para mim. Notas desviam a atenção do autor, porque quebram a fluência da leitura, especialmente quando colocadas no meio de uma frase. Gosto da regra da McCloskey: “Notas de rodapé deveriam guiar o leitor às fontes. E só” (p. 48). Talvez seja uma opinião radical demais, porque às vezes também acho difícil evitar uma nota explicativa… De qualquer forma, se as notas começam a tomar volume, é porque não têm importância meramente “subordinada”; nesse caso, merecem ser “promovidas” para o corpo do texto.

“Usa verbos, na voz ativa” (p. 70)

McCloskey sugere o uso de verbos na voz ativa e do imperativo (“usa verbos na voz ativa”) como substituto para a voz passiva (“verbos na voz ativa devem ser usados”). A tal da voz passiva, que a autora (des)qualifica de “covardia”, é a recomendação de vários manuais de normas técnicas, redação acadêmica e metodologia da pesquisa, inclusive o da universidade onde estudo. Mas, pra falar a verdade, ninguém pensa na voz passiva e ninguém fala na voz passiva. Muitos dos manuais autorizam a voz ativa, mas ainda em nome da impessoalidade, recomendam o uso da terceira pessoa do plural: “nós”. Agora, convenhamos: se sou autor único do texto, por que diria que “nós” fizemos isto ou aquilo? Na busca pela impessoalidade, pela imparcialidade, pelo distanciamento do pesquisador e tudo o mais, a academia acabou tornando-se um lugar onde se escrevem esquisitices.

“Evitar a Variação Elegante” (p. 56)

Variação Elegante é o uso de várias palavras com o mesmo significado – que muitos escritores usam e muitos professores recomendam com o fim de evitar repetições. Exemplo: “o autor”, “o eminente jurista”, “o doutrinador”, “o discípulo de Beltrano” – sempre para substituir o nome da pessoa, Fulano de Tal. McCloskey, no extremo oposto, chega a recomenda a repetição moderada de palavras, para manter a coerência do texto, usando às vezes pronomes oblíquos “para aliviar a monotonia” (p. 50). É uma solução melhor do que o perigo de, no fim das contas, o leitor nem saber mais a respeito de que estamos escrevendo (p. 56).

Outras dicas de McCloskey válidas para a escrita acadêmica

Não começar um trabalho acadêmico com aquela clássica encheção de lingüiça da “imaginação falida”: “Este paper…”.

Evitar a seção de “background”, “aquele material que coletaste e que depois descobriste que estava além do objetivo do texto” (pp. 36-37). Em outras palavras: manter o foco do texto; não divagar; excluir informações irrelevantes.

Pular o parágrafo-índice: “O presente paper está estruturado da seguinte forma: o primeiro capítulo…”. Dependendo da forma como se escreve esse parágrafo (e aqui me refiro também a “recapitulações” no início de novos capítulos), pode ficar mais fácil para o leitor localizar-se e ter uma noção de unidade do texto. Por isso eu relativizo esta regra…

Nunca repetir sem pedir desculpas: se julgares preciso repetir para reforçar ou relembrar um argumento, cuidado para não insultar a inteligência e a memória do leitor!

As REGRAS DE OURO ensinadas por McCloskey no seu livro são as duas seguintes, na minha opinião:

1) “Clareza é uma questão social, não algo a ser decidido unilateralmente por quem escreve. O leitor, como o consumidor, é soberano. Se o leitor acha que o que tu escreveste não está claro, então não está, por definição. Desiste de discutir.” (p. 12)

Por não entendermos isso, às vezes somos hostis às críticas de nossos leitores (involuntários revisores!)… Pensamos que está bem escrito e ponto, que se o leitor não entendeu porque é “limitadinho” intelectualmente, que ele não respeita o nosso “estilo”. Não, não, não: clareza não tem nada a ver com inteligência ou estilo. Nosso texto tem clareza, como bem ensina McCloskey, quando tem objetividade e fluência, isto é, quando o leitor (a “sociedade”) compreende o que escrevemos sem embaralhar-se.

2a) Lê, relê, trelê…

A autora dá uma dica para contornar o problema da falta de clareza: “Ler o que escreveste com frieza, uma semana depois de ter feito o rascunho, vai evidenciar partes do texto que nem mesmo tu consegues ler com facilidade” (p. 13). Aliás, também recomenda a leitura do texto em voz alta, para não usar palavras pomposas demais: “Tu ouves uma frase quando a lês em alta voz. É uma boa regra não escrever nada que terias vergonha de falar ao teu público-alvo” (p. 30). Mais adiante, diz ainda o seguinte: “Ler em voz alta é uma técnica poderosa de revisão. Lendo em voz alta, tu ouves o teu texto como os outros o ouvem internamente, e se teu ouvido é bom vais detectar os pontos ruins” (p. 68).

2b) … e reescreve!

“Escrita fácil produz leitura difícil. O Dr. Johnson disse há dois séculos: ‘O que é escrito sem esforço é em geral lido sem prazer’.” (p. 58). Revisar e reescrever é imprescindível. É o resultado da primeira idéia que expus neste texto (lembrando: escrever é uma habilidade, e não um dom) e da primeira regra de ouro (de novo: clareza é uma questão social, e não de estilo). É, enfim, um sinal de respeito ao leitor.

Se eu já era perfeccionista e um revisor compulsivo (de escritos próprios e alheios!), a releitura de Economical Writing me fez ainda pior. Ou melhor. Isso quem há de decidir é o leitor, que é soberano. Agora, uma coisa é certa: a literatura acadêmica muito se beneficiaria da aplicação das regrinhas simples expostas pela Dra. McCloskey. Haveria mais qualidade e interesse na ciência e no ensino-aprendizagem se houvesse mais qualidade na escrita. Encerro como comecei, “sem querer exagerar na abrangência”: teríamos um mundo bem melhor (pelo menos mais agradável para todos nós, leitores!) depois de uma revolução redacional.

Cristianismo, capitalismo, comunismo: dois “case studies” bíblicos

Eu sou capitalista. Isso não significa que eu seja materialista ou consumista. Meus anseios de consumo são, aliás, bastante modestos. Contudo, não me consigo imaginar vivendo sob outro sistema econômico. Por mais injusto que seja, o capitalismo ainda parece ser o sistema que mais responde às inclinações naturais do homem.

Talvez eu pense assim por não ter nenhuma experiência de vida senão a capitalista. Talvez, alternativamente, não pudesse ser diferente – afinal, eu estudo Economia, e nesse meio raros são os casos de quem simpatiza com outro sistema. Uma terceira e última hipótese que explicaria meu posicionamento é a própria observação da realidade. Mesmo o comunista mais ferrenho deve admitir que, por mais nobre que seja o ideal comunista, ele nunca se verificou – ou, se se verificou, não se afigurou tão nobre quanto a encomenda.

Estando ou não convencido por meus próprios argumentos pró-capitalismo, a verdade é que os relAtos (engraçadinho isso: os relatos do livro bíblico de Atos) sempre me causavam certo desconforto. Nesse livro, sobretudo em seus primeiros capítulos, conta-se que os primeiros cristãos “tinham tudo em comum. Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade” (Atos 2:44-45). Eis o retrato do comunismo cristão. A pergunta é: cristianismo (puríssimo) pressupõe comunismo? Ou, em outras palavras: é possível ser cristão e capitalista? A prior, eu diria que não. Porém, depois de refletir um pocuo, é interessante organizar as idéias e sintetizar conclusões.

Pesquisando na Bíblia, cheguei à seleção de dois casos. O primeiro deles é de sucesso. Em Lucas 19, Zaqueu, chefe dos cobradores de impostos, humilha-se para ver Jesus e recebe-O em sua casa e também em seu coração. Acaba resolvendo doar a metade de seus bens aos pobres e devolver o quádruplo do dinheiro que tinha cobrado indevidamente. (Isso porque naquela época havia corrupção na cobrança de impostos!)

O segundo caso é de fracasso absoluto. Em Atos 5, o casal Ananias e Safira vendem uma propriedade e, em vez de entregarem o dinheiro todo aos apóstolos, retêm parte para si. Mas essa atitude foi percebida pelo apóstolo Pedro. Tanto Ananias quanto Safira, ao serem desmascarados, caíram mortos. Uma cena inimaginável, a não ser em filme de terror – mas na Bíblia é mesmo essa a forma com que os fatos são descritos: “[Pedro diz a Ananias]: ‘Você não mentiu aos homens, mas sim a Deus’. Ouvindo isso, Ananias caiu morto.” (Atos 5:4-5).

Ora, a diferença é clara. Zaqueu devia ser muito rico – era não só cobrador de impostos, mas chefe deles; talvez um dos homens mais abastados e importantes (e odiados) da cidade. Ao converter-se a Cristo, decidiu doar apenas metade dos bens. Mesmo depois disso e da restituição em quatro vezes do dinheiro extorquido, é provável que tenha continuado a ser bastante rico. Ananias e Safira, por sua vez, não deviam ser tão ricos quanto Zaqueu. Enquanto este pôde abrir mão do muito que possuía com magnanimidade, aqueles não tiveram verdadeira liberalidade nem mesmo para se desfazer do pouco de que dispunham. É claro que, além disso, tentaram ludibriar os apóstolos e o próprio Deus – o que, convenhamos, nunca é uma jogada muito esperta.

A posteriori, desconstruo minha impressão inicial e concluo que… ser capitalista (ou próspero) não é pecado. Ser avarento, ganancioso, mesquinho, sim – a Bíblia está cheia de advertências a respeito disso (Mateus 6:19-24, Marcos 10:17-23, Lucas 12:13-21). A vida é deve ser uma constante busca por Deus, e não por riqueza material. Nossas fortunas pessoais – das enormes às irrisórias – pertencem a Ele e, por isso, estão também a serviço do próximo, quando somos generosos. Afinal, o que os dois case studies demonstram é que, para Deus, não importa tanto o sistema econômico quanto os reais desígnios do coração humano.

Um beijo, um queijo, um abraço e um presunto

Essa história de dar beijinhos é uma das convenções sociais que eu preferiria que não existissem. Pra começar, ninguém sabe ao certo quantos são – um, dois ou três? Ficar aquém das expectativas (por exemplo: dar dois beijinhos quando a pessoa espera por três) pode parecer grosseria, ou gerar aquela clássica e odiosa reação: “três pra casar”. Da mesma forma, ir além das expectativas também pode ser constrangedor.

O beijo é um fenômeno cultural por excelência, o que complica ainda mais a situação. No Brasil, em contextos informais, é muito comum dar beijo no rosto, mesmo de quem mal se conhece ou nem se conhece. Isso se aplica entre homem e mulher e entre mulheres, mas nunca entre homens – o que já não ocorre na Rússia, na Argentina, na Itália. Homem beijar homem é normal por lá. Aqui, é indicativo de homossexualismo – excetuando-se talvez apenas o beijo entre pai e filho.

No outro extremo há os países em que beijar só se restringe ao círculo familiar, sendo inadmissível fora dele. Em algumas familias alemãs, é costume os familiares trocarem selinhos – sim, na boca, mesmo. Tenho um cunhado alemão, e o pai dele (igualmente alemão) já me deu um selinho. Fiquei escandalizado, é claro. Ele, o alemão-frieza-distância-formalismo me deu um selinho. Eu, o brasileiro-descontração-samba-carnaval fiquei escandalizado.

Mesmo o lado do rosto que primeiro se oferece para beijar (sejam um, dois ou três beijinhos) é uma convenção cultural. No Quebec, é culturalmente aceitável dar beijinhos em certas situações, como no Brasil. Aconteceu comigo, porém, que alguém ofereceu a outra face. A cena foi ridícula: um encontro de narizes e bochechas, um quase-beijo nos lábios, um vai-e-volta de cabeças indecisas. Dificilmente isso ocorreria no Brasil, porque o brasileiro oferece sempre o mesmo lado.

O beijo era uma saudação usual já nos tempos da Bíblia, em meio ao povo de Israel. Porém, mostrou sua ambigüidade naquele que veio a ser o beijo mais importante da História: o sinal de Judas ao trair Jesus (relatos em Mateus 26:48-49, Marcos 14:44-46 e Lucas 22:47-48). Judas não teria conseguido trair seu Mestre com um abraço, porque é muito mais verdadeiro. Prova disso é que é emocionalmente fácil dar beijinhos em qualquer um – agora, tenta abraçar uma pessoa com quem as coisas não vão bem…

Pelo argumento cultural, recomendo o simples aperto de mão. Embora possa parecer frio, é bem mais seguro. Pelo argumento emocional, recomendo um abraço. É bem mais sincero e significativo; vale mais. Quanto a mim, vou ver se extirpo o “beijo” e o “bjs” do meu vocabulário. Chega: quero dar abraços. Pra ti, meu leitor… aquele abraço!

A bicicleta, o avião, a carruagem e o metrô

Nicolas Desjardins

João dos Santos e sua filha Anabela moravam em apartamento próprio, mas parcamente mobiliado, na periferia de Porto Alegre. Ele tinha trinta e cinco anos, apesar do aspecto de gurizão de vinte e cinco. Era enfermeiro e trabalhava em um posto de saúde que ficava perto de onde morava, tão perto que ia de bicicleta. Ela tinha catorze; crescera sem a mãe, que abandonou o lar e a criança de colo para tentar a vida com um sem-vergonha por quem se apaixonou. Assim é que João e Anabela tinham um ao outro na vida, e nada mais. Ele trabalhava por ela. Podia arcar com um só luxo: pagar aulas particulares de francês para a filha. Ela, por seu lado, estudava por ele. Tinha um só projeto: ser professora de francês e retribuir o esforço do pai.

Nunca se poderia imaginar que um comentário inocente viria a fazer tanta diferença na vida de João e Anabela. “O Canadá tem um dos melhores sistemas de saúde do mundo!”, disse aos colegas um dos estudantes de Medicina que atendiam no posto de saúde. “E como os canadenses têm poucos filhos, eles incentivam bastante a imigração. Quem sabe tem chance lá pra nós, hein? Tudo de bom!”.

Foi por acaso que João ouviu isso, mas ficou atento. Ele já ouvira coisas positivas sobre o Canadá. Não que ele fosse um homem erudito, mas ao menos assistia a algum programa de televisão, todas as noites, até ser vencido às pauladas pelo cansaço. Pela televisão, ele ficara sabendo que o Canadá tinha mesmo um bom sistema de saúde, e que a imigração era mesmo facilitada – e também que se falava francês por lá. O comentário do estudante de Medicina fez João pensar. No Brasil, não dava mais pra viver. Talvez no outro extremo do continente (ele ainda lembrava um pouco das aulas de Geografia!) sua profissão fosse mais valorizada. No Canadá, onde o governo ajuda tanto os imigrantes, talvez desse para pagar a faculdade para Anabela. Melhor ainda – ela talvez conseguisse passar em uma faculdade lá, para estudar francês em um país de língua francesa. Talvez. Tudo de bom…

Mesmo no seu dia de folga, João pegou a bicicleta e foi ao posto de saúde, para usar o computador da sala dos médicos. Buscou informações na Internet sobre obter o visto de imigrante. A burocracia não aparentava ser complicada, cara ou demorada. Era preciso apenas juntar uns documentos aqui, responder uns formulários ali, e enviar tudo ao serviço de imigração. João fez tudo isso em sigilo, sem contar para Anabela. Economizou em tudo para conseguir pagar as taxas. Apesar do esforço, não tinha muita esperança de que desse certo. Qual não foi sua surpresa quando, oito meses depois, chegou uma carta. O Consulado do Canadá em Porto Alegre chamou para uma entrevista, em inglês e francês. E chamou não só João, mas também Anabela – os dois candidatos à imigração.

Não tinha mais como esconder: João contou para a filha sobre a sua idéia, sobre o tiro no escuro, sobre a entrevista. Nunca tinha visto os olhos verdes de Anabela tão azuis como naquele dia. Brilhavam como nunca. Ah, uma possível ida a um país de língua francesa! Anabela também já havia ouvido falar sobre o Canadá. Nas aulas de francês, a professora particular dava uns toques sobre a cultura canadense, o estilo de vida, o bilingüismo… A fantasia sem amarras de Anabela permitia que ela se imaginasse vivendo lá.

Na entrevista, os funcionários do Consulado ficaram muito impressionados com o francês da menina e com o inglês do pai – positivamente quanto a ela, negativamente quanto a ele. Ainda assim, o que João sabia de inglês, recordações dos três semestres de curso básico que fizera, bastava para as exigências da entrevista. Semanas mais tarde, chegou outra carta: tinham sido emitidos os vistos de imigração.

Foi preciso ler, reler e treler a carta, tal era a incredulidade dos dois – uma incredulidade feliz. Logo passou o período de anestesia e João se obrigou a confrontar seus questionamentos. Emigrar para um país distante, sem garantia nenhuma, submetendo a si mesmo e à filha a um banho de imersão em incerteza – era isso mesmo que ele queria? É claro que não. Mas, ora, não era isso que estava em jogo. Havia garantias: o governo canadense lhe daria uma determinada quantia em dinheiro para o seu estabelecimento e para as despesas dos primeiros meses. Receberia, além disso, um benefício de seguro-desemprego por doze meses, até que pudesse encontrar um trabalho condizente com suas habilidades. Não se tratava de um banho de incerteza; na verdade, era uma grande oportunidade para que João fizesse um retorno na rua sem-saída em que sua vida tinha se transformado. Ele era jovem e resolveu apostar tudo nessa chance única. Depois de fazer o retorno, restaria escolher se queria seguir à frente, à direita ou à esquerda. Voltar para trás, nunca mais.

Vendeu o quase-nada que possuía: do apartamento à bicicleta velha que tinha mais valor sentimental do que econômico. Conseguiu juntar um dinheirinho razoável, ao menos suficiente para pagar os bilhetes de passagem aérea e complementar, se preciso, a ajuda do governo canadense. Afinal, precisaria de dinheiro para reconstruir a vida. Ir para o Canadá já não era apenas uma idéia, mas um projeto de vida. João estava decidido a não mais voltar. Não tinha por que deixar algo seu no Brasil.


(Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre: http://www.portoimagem.com)

Num vinte e nove de julho, João e Anabela devolveram à hospedeira a chave do quarto de pensão onde moraram por um mês, após a venda do apartamento. Cada um tinha uma mala, não muito grande nem pesada. Pegaram uma lotação para o aeroporto. Fazia um frio de rachar em Porto Alegre naquela típica madrugada de inverno. O vento soprava forte no Salgado Filho e o chefe daquela unidadezinha familiar, totalmente inexperiente no quesito viagens aéreas, tremia de medo – muito embora, macho, não admitisse: “não é medo, é só um pouco de frio”. Anabela procurava tranqüilizá-lo: “Ô, pai, nem te preocupa: a professora de Geografia disse que o avião é um dos meios de transporte mais seguros que existem – quase nunca acontecem acidentes”. O argumento não convenceu o homem (essa aula de Geografia ele tinha faltado) e ele continuou disfarçando o medo.

Anabela, ao contrário, nem se quisesse poderia esconder a alegria. Desconversava feliz da vida: “Ah, falando em transporte, tu sabia que no Canadá tem metrô? E não é que nem o Trensurb aqui de Porto: é um metrô mesmo, que anda sempre por baixo da terra. Dizem que também é tri rápido e seguro! Será que a gente vai andar muito de metrô lá, pai?”. João não conseguia muito mais que murmurar respostas sem sentido e continuar alimentando o seu medo bobo. Anabela não dava bola – nada poderia tirar-lhe a alegria. Despedira-se de suas melhores amigas e as proibiu de ir ao aeroporto. Não queria ter mais despedidas chorosas nem ver nenhuma delas no observatório do andar de cima, dando tchauzinho. Queria mergulhar na vida nova. Manteria contato, é claro, mas não queria oportunidade de arrependimentos e dores da partida.

Os vôos, as conexões e a chegada ao Canadá se deram sem complicações, permitindo que se dissipassem o medo e as preocupações de João. Era a manhã do dia trinta, um domingo ensolarado, quando pousaram no aeroporto internacional Trudeau, na cidade de Montreal. Fazia quarenta graus – não sabiam que era verão no hemisfério norte (essa aula de Geografia os dois tinham faltado). João e Anabela guardaram as roupas do inverno gaúcho na mala e tiraram o dia para conhecer um pouco da metrópole. As flores e os jardins, a arquitetura do centro antigo da cidade, o povo receptivo, gente falando francês, gente falando inglês… Não restavam dúvidas: queriam morar lá mesmo.

O primeiro pernoite foi em um albergue de juventude bem barato. No dia seguinte, uma segunda-feira, João tratou de encontrar, no lado francês da cidade, um apartamento. Era tão simples e parcamente mobiliado como o de Porto Alegre, mas havia boas perspectivas: era apenas o começo. João procurou o serviço de imigração e obteve o auxílio inicial do governo. Abriu conta bancária para fazer o depósito do cheque e das economias trazidas do Brasil, já convertidas em dólar. Depois, foi com Anabela matriculá-la em uma escola pública. Ela estudaria em língua francesa. Naquele dia os olhos dela brilharam e azularam tanto que nunca mais voltaram a ser verdes.

(Praça Jacques-Cartier, e a Prefeitura antiga de Montréal, ao fundo)

O arranjo, até então, estava perfeito, mas chegou o mês de agosto. Na primeira hora do dia, Anabela foi para a escola e João, à secretaria de saúde, em busca de emprego. “Seu diploma não vale, Monsieur Santô”, dizia o atendente. João tinha dificuldade de entender. “Seu diploma brasileiro não tem validade aqui no Canadá, Monsieur”, repetia o rapaz, esforçando-se para falar devagar e claramente. João compreendeu já na segunda vez – seu problema era não querer compreender. Como assim, não tem validade? Saiu dali e foi direto até a Prefeitura. Era imigrante e tinha direitos. “De fato, o senhor tem vários direitos como imigrante”, concordou o funcionário, “mas, para exercer a enfermagem, terá de estudar em uma universidade canadense. O senhor não leu os papéis da imigração?”.

Não, João não lera os papéis da imigração – pelo menos não essa parte. Saiu dali com lágrimas nos olhos: era apaixonado por sua profissão. Descendo a escadaria da Prefeitura, avistou a Praça Jacques-Cartier, logo em frente, cheia de turistas. E os turistas estavam cercados por feirantes, músicos, pintores – todos tinham algo para vender. Foi um consolo para João. Não lhe faltariam oportunidades de trabalho naquela cidade. Viu também, à margem da praça, uma carruagem, levada por um belo e forte cavalo branco e conduzida por um senhor grisalho, sorridente e vestido em trajes de época. Na parte de trás da carruagem, um casal de turistas apaixonados devorava com os olhos as belas imagens à sua volta. João se imaginou naquela posição, em alguns anos: grisalho e sorridente, conduzindo casais em uma carruagem ao longo das ruas românticas da cidade antiga de Montreal. E pensou no sorriso e nos olhos azuis contemplativos de Anabela, sentada na carruagem, num dia de folga em que ele pudesse levá-la para passear. Fez uma boa oferta ao dono da carruagem (foram-se as economias) e começou a trabalhar no dia seguinte.

(A carruagem, em frente à Praça Jacques-Cartier!)

O negócio ia bem, até que chegou o inverno. Em dezembro, a temperatura caiu para vinte graus negativos. Quando a temperatura ficava mais amena, perto de zero, nevava muito. De um jeito ou de outro, poucos saíam de casa para um passeio de carruagem. No início, João passava dias inteiros ali, parado em frente à Praça Jacques-Cartier, esperando algum turista corajoso – que nunca vinha. O jeito foi guardar a carruagem em um depósito, mandar o cavalo para um haras na periferia e pedir o seguro-desemprego ao governo. Voltaria a trabalhar em um mês.

Mas o que ele não tinha era seguro-desespero – e começou a preocupar-se, achando que se encaminhava ao mesmo insucesso que vivia no Brasil. No mês de janeiro viciou-se em televisão, o que só serviu para aprimorar seu francês e destruir sua auto-estima. Fez um super-rancho no início do mês e cozinhava todos os dias em casa, só para si, na hora do almoço. Anabela almoçava na escola. Sua aula terminava às cinco da tarde. Ela saía de lá às cinco e dez e, depois de vinte minutos na linha verde do metrô, chegava à estação de destino.

(Estação de metrô, em Montréal)

Esse era o único momento do dia em que João colocava os pés fora de casa, naquele inverno. Todos os dias, pontualmente às cinco e quinze, saía de casa e caminhava até a estação Honoré-Beaugrand, a dez minutos a pé do apartamento; levava no máximo quinze minutos, quando o gelo na rua dificultava muito a caminhada. E lá João esperava Anabela. Ela descobria um mundo novo; ele, como no Brasil, só tinha a ela. Esperá-la dia após dia e vê-la ansiosa para contar as muitas novidades era sua única alegria. O sorriso e o brilho nos olhos de Anabela eram a vida de João.

Naquele dia não havia gelo e João chegou à estação cinco minutos antes do metrô. Esperando na plataforma, viu um pequeno aro de metal dourado perto dos trilhos. Parecia um anel de ouro. “Quem me dera pudesse dar um desses à Anabela…” Mas será que era um anel? Foi para perto, na beirada, e se inclinou para ver melhor. Era mesmo um anel de ouro, com uma pedrinha brilhante! De bobeira, desequilibrou-se e caiu no fosso do metrô, entre os trilhos, bem ao lado da placa onde dizia: 1.200 Volts. Por um triz! João colocou discretamente o anel no dedo mínimo e gritou por ajuda para subir de volta à plataforma. Um passageiro saiu em busca de ajuda, mas o trem vinha rápido.

No trem vinha Anabela. Ela nem imaginava, mas naquela noite… ganharia um anel.

Não, não parei de postar!

Não só em resposta a comentário do último post, afirmo que não, não parei de postar. Quer dizer, de um ponto de vista temporário, por “motivos conjunturais” da minha vida, sim, mas não definitivamente. Hoje retorno ao blog, não sem antes explicar o meu afastamento dos últimos dias. Minha intenção não é justificar nada (até porque eu sei que leitor de blog não perdoa), mas acho que uma satisfaçãozinha eu devo, sim.

Resolvi me inscrever no Literal, o concurso literário da Fabico. Por isso, no fim da semana passada (até o sábado), fiquei bastante ocupado com o conto que escrevi. Nem precisava ser inédito – porém, só me dei conta disso ao efetivamente enviar o conto para fazer a inscrição. Então, de certa forma, meu afastamento já estava pré-justificado. Mas o afastamento teve outra causa: uma prova (sim…) de Direito Civil, da qual me livrei hoje de manhã. Um dia eu aprendo a estudar mais cedo para não precisar deixar de postar. (Que vergonha!)

Coincidência ou plano?

Em certos dias (ou anos), os acontecimentos são tão misteriosamente ligados uns aos outros que a gente chega a ficar desconfiado. Não sei se é assim que Deus nos comunica Seus planos, ou se se tratam de meras coincidências – ou se meras coincidências estão dentre as formas pelas quais Deus comunica Seus planos. O fato é que essas coisas acontecem e talvez tenham um significado além do francamente inteligível.

Hoje foi um dia desses. Pela manhã, conversava com uma colega do Direito sobre minhas aventuras e desventuras no Jornalismo da UFRGS. À tarde, recebi um convite para dar uma palestra na UFRGS sobre minha participação na última conferência do clima. Mal tinha respondido o convite, chegou e-mail avisando sobre o concurso literário da Fabico, a Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS.

E então? A palestra é irrecusável, por mais que seja difícil abrir espaço no meu horário. Mas e o concurso literário? Em tese ainda sou aluno da Fabico e posso participar. A idéia é tentadora e o prazo é apertadíssimo – até sábado. Mas afinal, voltar a escrever é tudo o que tenho desejado nesses últimos tempos. Talvez o aviso sobre o concurso tenha servido de incentivo para remover a ferrugem da minha imaginação e colocar meu sonho em dia. Quem sabe?

Revisão e previsão

Desde o início deste blog, a história que conto aqui tem sido a mesma, ressalvados eventuais desvios: o meu caso com a escrita. É uma história que se desenrola até hoje, confundindo-se, de certa forma, com a minha própria história de vida. Concursos de redação, interesse por mudanças climáticas e Direito Internacional, três (ou seriam 2,0784?) cursos universitários… O meu caso com a escrita, conforme procurei explicitar nos posts ao longo do último mês, é peça-chave para explicar o trajeto que me trouxe para as bandas onde ora me encontro.

Isso não significa, no entanto, que a explicação esteja completa. Feita essa breve revisão mensal (parabéns ao blog pelo seu primeiro mês de existência!), à previsão. Faltam ainda posts essenciais. Uma série deles, a ser escrita oportunamente, diz respeito ao meu caso com a música, que infelizmente anda um pouco apagado, mas que não por isso deixa de ser importante. Outra série de posts diz respeito a outro caso, no sentido mais estrito da palavra: meu caso de amor. Sim, único. Renderia um blog inteiro (um livro, quem sabe?), mas, sendo assunto concluso, vai levar só alguns posts. É disso, pois, que me ocuparei em seguida.

O polêmico discurso de formatura

Fui orador da turma de formandos do ensino médio do CEFET-RS em 2002 (formatura no inverno de 2003). O discurso foi polêmico, é verdade, mas não “malvado”, impressão que pode ter sido deixada pelos comentários do post The time of my life (?), na última sexta-feira, aqui do blog. 😛 Agora vou exercer meu direito de resposta: a publicação (inédita!) do próprio discurso. Não há prova melhor de que o discurso não poderia ser mais bem-intencionado. Aliás, até ufanista ele foi… Bom, cada um pode tirar suas próprias conclusões! 🙂 Embora sugestões sejam um pouco tardias, comentários são bem-vindos!

Digníssimas autoridades, já saudadas,

Caros professores,

Prezados pais,

Estimados colegas,

Senhoras e Senhores,

Falar por todos é impossível; não pode um só em tão grande grupo de formandos dizer tudo o que todos gostariam de dizer neste momento a respeito de sua história no CEFET-RS, pois as experiências são, em geral, individuais. No entanto, vou discorrer sobre um sentimento que confere unidade a esse grupo diverso. Só posso fazê-lo a partir de minha perspectiva; peço, assim, que relevem minha parcialidade, tendo sempre em mente que não tenho intenção de ser senão minimamente isento.

O sentimento a que me refiro não é só a consciência comum que há em qualquer grupo que perdure por algum tempo; diz respeito a algo maior, que nos fez ingressar no CEFET-RS, perseverar até hoje, referir-nos tantas vezes ao CEFET-RS como a Escola.

Enquanto estudante de Ensino Fundamental, a Escola sempre fora a única opção de Ensino Médio em Pelotas: a Escola, e não uma qualquer. Tinha de ingressar no CEFET-RS: sem dúvida, o alvo dos aspirantes ao Ensino Médio ou Técnico. Muitos podem negá-lo; porém, arrisco afirmar que a maioria não nega de coração, mas só superficialmente, e pode até abdicar de estudar no CEFET-RS, mas não sem remorso. Isso tem a ver com o fato de a imagem da Escola estar acoplada, na mente das pessoas, a uma idéia de excelência absoluta.

Aos poucos, percebemos que essa excelência está desbotada. Que ninguém se iluda e pense que a Escola não tem problemas. Não houve faltas prolongadas de professores, mas não foram poucas, durante um mesmo ano, as trocas de professores, prejudicando o curso das aulas. Os recursos disponíveis nem sempre correspondiam às expectativas. Nem sempre tínhamos o estímulo de que precisávamos para estudar. Apareceram professores não muito qualificados, bem como professores excelentes, mas desmotivados, desiludidos e sem perspectivas de carreira, terminado o seu contrato de trabalho no CEFET-RS. Tudo isso teve reflexos negativos no ensino.

Nem sempre a Escola trouxe à tona o melhor de nós; não raras vezes trouxe angústia em relação ao futuro. Sem dúvida, o mais enervante e angustiante carro-chefe das incertezas foram paralisações e greves, em que fomos privados do calendário escolar regular e da conclusão do curso em tempo igualmente regular, que tanto desejávamos e merecíamos. Sempre estivemos com os grevistas no objetivo muito justo e legítimo de lutar por aquilo que lhes é de direito, ou seja, uma carreira digna e uma remuneração condizente com a importância social da atividade que desempenham. Contudo, discordamos, muitas vezes, da maneira (de certo modo destrutiva e até auto-destrutiva) como lutaram por isso. O resultado dessas paralisações, danosas a todos os envolvidos, já é conhecido: a situação pouco muda para o servidor público federal, e o que se decide, teoricamente, em favor dele acaba convertendo-se, na realidade, em mais um pesadelo, como os últimos aumentos ultrajantes concedidos aos servidores. Diante disso, a posição de compromisso e solidariedade dos alunos, não para com as greves, mas para com as causas que as motivam, deve ficar sempre evidente.

Os problemas, no entanto, não foram maiores que nossa vontade de estudar na Escola, adorada pela comunidade por várias gerações. Prova óbvia dessa superação é este teatro repleto de estudantes. Note-se que muitos, por vontade ou não, ficaram pelo caminho: uns foram para colégios particulares, supondo encontrar lá melhor ensino (em geral, com pouco sucesso); outros não conseguiram vencer alguns desafios, mas estarão aqui em breve; há terceiros que desistiram da Escola para, evitando greves, passar mais rapidamente à universidade. Quase fui um destes últimos. Temia que, uma vez aprovado no vestibular, meu acesso à universidade fosse dificultado por não ter concluído o Ensino Médio – como de fato aconteceu comigo e com tantos outros. Por que não jogar tudo para o alto e efetuar transferência para outra escola? A resposta é oca: outra escola não é a Escola. Revelar essa misteriosa força de atração é meu motivo de estar aqui, neste instante. E, para chegar à conclusão, é bom rememorar.

O CEFET-RS, com genuínas personalidades, é um lugar onde cabe um mundo de diversidade. Poderia ter enriquecido minha vivência, participando dos grupos de jovens reacionários e politicamente engajados. Embora tenha jogado basquete, poderia ter aprendido mais com os esportistas e atletas da Escola, que fazem do esporte um exercício mais que físico, mas também de humanidade e convivência. Deixando de ser tão pacato, também poderia ter aproveitado as lições de vida divertida com os que estavam sempre em festa e que às vezes apareciam sonolentos em aula. Poderia, ainda, ter participado mais do grupo cristão, que se reunia para cantar e estudar a Bíblia nos intervalos, curtos e apertados entre as sirenes que não raras vezes nos sobressaltavam… Mesmo tendo participado do coro da Escola, enquanto houve, poderia ter tido mais experiências musicais no CEFET-RS. Fiquei por muitas vezes em dívida com o ritual sagrado dos intervalos, a saber, a tradicional reunião na cantina: todos estavam lá, mesmo quando não podia entrar nem sair ninguém. Poderia ter aprendido, no CTG Carreteiros do Sul, a apreciar mais as tradições gaúchas – no fim das contas, tomei pouco chimarrão, e só quando algum colega levava e era permitido, naturalmente. Muitos encontraram na Escola seu high school sweetheart, seus amores do colegial, e, sob os olhos atentos e por vezes demasiadamente críticos dos inspetores, descobriram os lábios de seus amores… Comigo isso não aconteceu: não encontrei a minha amada… Mas é verdade que conquistei amigos e amigas fiéis; conheci pessoas de quem dependi, em momentos felizes e tristes, e que dependeram de mim; fiz amizades verdadeiras que não se dissolverão com esta formatura. Por outro lado, sei que há quem me tenha inimizade e até repúdio, embora não tenha cultivado nada disso. Lamento e gostaria de poder consertar tudo, para só ter e deixar boas lembranças. E sequer citei as aulas, a experiência principal no CEFET-RS (pelo menos é o que se pretende). Acertando e errando, aprendi muito com professores; uns, grandes e memoráveis; outros, nem tanto, mas também dignos de estima. Tornei-me amigo de alguns, que me serão eternos mestres. Aprendi a suportar uns poucos, quando sua matéria ou seu modo de ser não me agradavam, consciente de que nem por isso podia prescindir de suas aulas para completar minha formação. A ambivalente teimosia fez com que reafirmasse minhas certezas e com que reincidisse em erros em vez de ouvir o mais experiente.

Por três anos (e meio), escrevi, calculei, pensei, entendi, expliquei; mais que este, menos que aquele; na média, tanto quanto cada um dos colegas. E, ainda assim, deixei de fazer muito do que poderia ter feito, como estudante do CEFET-RS. Poderia repetir toda a experiência, para aproveitá-la melhor. É fato que, algumas vezes, o tecnicismo reinante na Escola serviu de barreira intelectual a mim e a colegas que cursaram só o Ensino Médio. Em verdade, talvez a Escola fosse o lugar errado para nós que descobrimos não ter a ver com números, fórmulas, processos e resultados de alta precisão. Contudo, o ambiente do CEFET-RS não nos sufocou. Pelo contrário: mais uma vez, a idéia de excelência nos manteve firmes, quando o descontentamento e as frustrações nos empurravam impetuosamente para fora da Escola.

Não podemos determinar com precisão a importância da Escola na modelagem de nossa personalidade e no desenvolvimento de nossos talentos. Da mesma forma, nunca saberemos se fizemos a escolha certa – nem mesmo depois de termos de fato estudado no CEFET-RS –, pela simples razão de não podermos voltar atrás e escolher novos rumos. Fato é que não há arrependimentos. Ingressamos sob o alucinante efeito da idéia de excelência absoluta; aos poucos, porém, aprendemos que a Escola não é a opção, mas a melhor opção. A idéia de excelência, mesmo relativizada, continuou a existir, pois a lei da atração exercida pelo CEFET-RS lhe é intrínseca, não pode ser dele isolada. A Escola é especial porque as pessoas que nela estão são especiais – e mais relevantes que os problemas. E essas pessoas são especiais porque as que houve antes delas também o foram – e assim por diante. A sensação de que a Escola é a melhor escolha que poderíamos ter tomado está difusa e muito alicerçada, tanto que, apesar dos períodos de tensão, incerteza e inquietação enfrentados por nós no CEFET-RS, persistimos e superamos as dificuldades. Parece até que essa idéia de excelência acerca da Escola nos vem pronta, por herança. Mas temos de admitir que gerações de ex-alunos que hoje vivem felizes e bem-sucedidos não são uma ilusão coletiva… Caminhos de conquistas foram traçados por ex-alunos da Escola de Artes e Ofícios, da Escola Técnica de Pelotas, da Escola Técnica Federal de Pelotas, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Pelotas, nos últimos 60 anos. Se a sua felicidade e o seu sucesso dependeram, de fato, da sua passagem por esta instituição, isso é um eterno mistério; mas essas pessoas existem, são realidade empiricamente verificável.

Em linhas gerais, fomos felizes ao estudar no CEFET-RS. O sentimento comum que compartilho com os colegas é a esperança de desfrutar de felicidade e de concretizar em nós o ideal de excelência pelo qual o CEFET-RS, como supomos, é responsável. E está aí, de certa forma, a força de atração que nos manteve na Escola até o final, e que nos afasta de arrependimentos, e que nos faz insanos ao ponto de dizer que repetiríamos tudo. Essa força tem origem na tradição; é hoje porque ontem foi; será amanhã porque hoje é. Só o que temos de esperar, a partir de agora, caros colegas, é que, com a graça do Eterno Pai, a história feliz e bem-sucedida daqueles que passaram ontem pelo CEFET-RS continue hoje e amanhã, por meio de nós.

Parabéns a todos nós e muito obrigado.

Razões por que o dia de hoje (não) é especial

  • Não conto mais com a circunstância atenuante da pena do artigo 65, inciso I, do Código Penal. Se ontem eu tivesse praticado um crime, receberia uma pena tal; se praticasse o mesmo crime hoje, ceteris paribus (tudo o mais constante!), a pena seria maior. Isso tem importância indiscutível!
  • Alcancei hoje a capacidade plena para os atos da vida civil segundo o critério do Código Civil revogado de 1916.
  • Hoje, pela primeira vez em 118 anos de história republicana, teríamos uma mulher no exercício do cargo político de mais alta hierarquia do país, porque o titular saiu em viagem. Mas no fim das contas o Presidente do Senado assumiu – e o dia de hoje passou a ser tido como importante pelo fato de ser mais um, em 118 anos de história republicana, em que uma criatura do sexo masculino governa o país.

  • Ganhei um presente de um grande professor, também orientador no serviço de assistência judiciária: uma prova de Direito Processual Civil.

  • Uma prova já foi, mas outras ainda virão – e por isso preciso estudar hoje.

Ironias à parte, há muitas razões para de fato comemorar:

  • Sobrevivi à prova de Processo Civil e pude voltar a escrever no blog!
  • Já recebi umas 50 mensagens de parabéns pelo meu aniversário – e, enquanto escrevo este post, não param de chegar.
  • Todos os que me encontram me dão parabéns simplesmente porque eu existo há 21 anos. Não existe nada melhor para a auto-estima de uma pessoa!

  • Tenho família e amigos com quem comemorar!
  • A mais importante: meu Deus me deu 21 anos de vida feliz, abençoada e com saúde! Eu posso morrer amanhã (nunca se sabe), mas terá valido a pena, porque conheci o Senhor Jesus Cristo, meu Salvador! (Aos leitores: Esse eu recomendo!)

A loteria vocacional

Tendo estabelecido que eu não sou o máximo, posso dar seguimento àquela que um dia foi a narrativa de ontem e que, como percebem os leitores mais assíduos desse blog, pode muito bem ser chamada de a narrativa de outrora… e sempre.

A partir da minha seleção para a primeira conferência da ONU sobre o clima com participação jovem, quando estava ainda no primeiro ano do Ensino Médio, tudo mudou drasticamente. O contato direto com a mídia européia durante a conferência me fez pensar sobre a qualidade (nem sempre muito boa) da informação que se publica(va) no Brasil a respeito das mudanças climáticas. Estudando cada vez mais o tema, passei a escrever artigos para alguns jornais. Minhas atividades de escrita deixaram de ter um fim em si mesmas; passei a escrever tendo por fim a conscientização ambiental.

No ano seguinte (2001) fui convidado para a continuação da mesma conferência. Nessa oportunidade, tive mais uma boa dose de mídia. E mais: estabeleci contato com o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC) e passei a atuar como uma espécie de consultor jovem. Escrevi uma cartilha jovem sobre o clima, participei como relator de vários eventos pelo FBMC… pensando sempre em como comunicar melhor a mensagem da mudança climática, que no Brasil não tem o mesmo eco que encontra em outros países.

Mergulhado de cabeça nesses ideais, o Jornalismo passou a despontar no meu leque de opções profissionais. No terceiro ano, minhas atividades climático-jornalísticas relaxaram um pouco (afinal, estudei para o vestibular!), mas não foram deixadas de lado. E a idéia de fazer Jornalismo, diante de tantas experiências, crescia dentro de mim… Por outro lado, eu pretendia cursar Direito, para aprofundar-me em Direito Ambiental, já que a ciência da mudança climática não era pra mim.

Fiz um teste vocacional que media a probabilidade de ser feliz por realizar determinada atividade profissional. Resultado: área de literárias (97% ou algo tão absurdamente elevado quanto isso) e área de persuasivas (90%). Cursos sugeridos: Direito e Jornalismo. O teste me reforçou a certeza que eu já tinha e me permitiu continuar com a dúvida que eu também já tinha. (Não é uma maravilha? Não esperava milagre de um teste vocacional; ele fez tudo o que tinha que fazer! Até hoje dou graças a Deus, de verdade, por ter feito esse teste.)

Não por uma questão de herança familiar, porque nenhum de meus ascendentes se formou bacharel em Direito, mas minha família tinha como certo que esse era o curso para o qual eu prestaria vestibular. Não havia preconceito negativo contra Jornalismo, mas já estava estabelecido para todos que eu prestaria vestibular para Direito na UFPel e na UFRGS – para todos, menos para mim. A dúvida ainda me inquietava. A vontade de escrever, de comunicar… O Direito Ambiental…

A inscrição para o vestibular da UFPel já estava feita: Direito. Mas eu ainda tinha de ir aos Correios para fazer a inscrição para o vestibular da UFRGS… Ah, como eu adiei aquela ida aos Correios! Uma conversa com um grande amigo me fez ter uma idéia. Fui aos Correios. Quando voltei, avisei minha mãe que tinha feito a inscrição também na UFRGS. Para Jornalismo.

Acho que até discussão em casa eu tive – “como assim, Jornalismo?”. Mas não tinha mais volta. Era a única forma que eu tinha de empurrar para mais tarde a decisão : “se passar, decido o curso – ou não, porque posso não ter opção”. Foi uma espécie de loteria vocacional. Ganhei um prêmio, mas a loteria não serviu para nada – passei nos dois vestibulares. E agora, José?!