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Chico Pedreiro: uma pessoa muito importante

Ok. Um gesto simples para o estudante universitário diante do computador, mas intenso para a afirmação lingüística do jovem de dezoito anos. Pode parecer ridículo – e é, até certo ponto –, mas o que tem a dizer o corretor ortográfico do Word importa, sim. Afinal, é nele que tomo referência para retificar deslizes de digitação e grafia de meus trabalhos acadêmicos e de todos os meus escritos que, por absoluta falta de paciência e romantismo, não faço a mão. É o momento: estou em êxtase. Sem mais delongas, passo a digitar, pleno de expectativas. A palavra parece envolta ainda em névoa. Aí está ela, enfim, nítida: desimportante.

Pronto, passou. Contudo, para minha profunda decepção, ali está a agressiva linha serrilhada, nesse vermelho berrante que me faz doer os olhos e a alma, abaixo da palavra desimportante, que meu dicionário eletrônico desconhece. Até tu, Brutus?

Calma, leitor afoito. Não estou sob efeito de quaisquer entorpecentes. A tua indignação ante este texto igualmente indignado bem que se justifica, uma vez que não conheces minha história.

Precisamente no dia 10 de abril de 1997, eu fazia uma prova de língua portuguesa, na sexta série primária. Chico Pedreiro foi uma pessoa muito importante. Essa afirmação bem simples e particularmente imbecil eu tinha de reescrever, substituindo a palavra importante por outra de significado contrário. Chico Pedreiro foi uma pessoa muito desimportante, escrevi, na minha letrinha tosca de guri de onze anos.

Um X bem grande pra mim: questão errada. O léxico internalizado de minha cara professora (a quem eu não deixei de estimar, apesar da intolerância que teve para com minhas intuições lingüísticas) não reconhecia a palavra desimportante. Resposta certa e viável seria insignificante. Chico Pedreiro foi uma pessoa muito insignificante. O meu colega e amigo Hugo tinha acertado. Que inveja – claro, como se eu não conhecesse a palavra! Uma bobagem minha…

Mas eu ainda lembro. Não concordei assim, sem reservas ou contestações. Em casa, procurei no meu Aurelinho, mas ele não registrava o desimportante. Procurei no Luftinho de uma de minhas irmãs, mas ele também não registrava o desimportante. Nenhum dos dicionaristas em meu alcance deu a mínima importância ao desimportante. Também pudera: dicionaristas têm mais o que fazer do que dar importância ao desimportante, digo, ao insignificante (dizia a professora: desimportante não existe). E eu, que na hora do aperto da prova me sentira tão feliz com a minha construção vocabular por prefixação, depois do resultado, senti-me desimportante (sic). Sic, assim mesmo, tão mínimo e insignificante que não chegava sequer a existir, naquele momento: era uma coisa desimportante.

Superei a situação. No fim das contas, aquilo era, de fato, desimportante, ou melhor, insignificante. Tirei nove-e-seis – além dos dois décimos descontados por conta do desimportante, havia na prova outro erro insignificante – e não mais me preocupei com questões como aquela, de pouca importância (para não dizer outra coisa).

Isso até hoje, 3 de julho de 2003. O mundo deu 2.274 voltas em torno de si e eu vim parar numa aula de Lingüística e Comunicação, na Fabico, um ambiente que tem algo de superior à escola primária em que estudei – sem querer tirar das escolas públicas estaduais sua relevância, digo, significância, ops… ah, entenda-se! E hoje a professora de Lingüística me transportou sem querer aos meus longínquos-mas-nem-tanto anos pueris, fazendo retumbar em meus ouvidos um sonoro desimportante.

O tema da aula, por segundos, perdeu a… ahm… importância. Tudo parecia um déjà vu daqueles de rachar a cabeça. Cinco horas depois, chego em casa (acontece que moro um pouco longe da faculdade) e não tenho dúvida: consulto meu dicionário, que hoje é um Aurelião Século XXI. Coisa de doido, mas lá estava, inabalável, inatingível, irrevogável, escrito na História e, sobretudo, mais importante do que nunca, o meu, o meu desimportante: adjetivo que significa de nenhuma ou pouca importância. Yes! Olho para a negra noite de inverno. Uma luz se abre dos céus sobre mim e me regozijo: os lexicógrafos ouviram enfim as minhas preces! E ouço um canto divino, angelical.

Agora, porém, acabo de cair em tristeza. O meu corretor ortográfico não reconhece a importância do meu desimportante. Além dele, estão lá na minha estante, ainda ignorantes, o Aurelinho e o Luftinho – e tantos outros, em bibliotecas pelo Brasil afora. E, pior, talvez alguma professora esteja por aí, censurando guris que se atrevam a lançar mão de palavrinhas que fogem ao seu restrito universo; digo, palavrinhas que fogem não ao universo do aluno, mas ao da professora. E talvez os guris se creiam usuários incompetentes da língua portuguesa – talvez se achem uns desimportantes. Queria poder dizer a todos que não desanimem: a redenção, embora tardia, veio a mim, e um dia virá também a eles.

Arrancar ou não arrancar

Sabe aquelas coisas bem pequenas que podem nos incomodar bem bastante? Uma delas eu tenho visto ao chegar em casa todos os dias, pelo menos ao longo do último mês.

Esse cartazinho petulante aí, afixado no meio da porta de entrada do edifício onde moro, tem tantos problemas de forma e conteúdo que fica difícil saber por qual começar. Então o jeito é começar.

Esteticamente, é horrendo, em todos os aspectos: caligrafia, recorte do papel, uso dos adesivos, escolha do local de afixação.

Socialmente, é grosseiro, para dizer o mínimo (que já inclui “de mau gosto”, na minha definição).

A conduta que o cartazinho parece pretender evitar (cinzas e bitucas de cigarro jogadas pelas janelas, no pátio e nos jardins) é obviamente contrária ao bom senso; os fumantes deveriam abster-se dessa conduta independentemente de aviso.

Porém, em vez de advertir os fumantes das penalidades a que estão sujeitos por causa dessa conduta (o que me pareceria mais adequado), o cartazinho emprega sarcasmo. É óbvio que janelas, pátio e jardins não são cinzeiros; todos os fumantes sabem disso (exceto, talvez, aqueles com distúrbios psiquiátricos gravíssimos).

Com esse sarcasmo, o cartazinho insulta a inteligência de todos os fumantes, tanto dos que descartam adequadamente as cinzas e bitucas quanto dos que as descartam inadequadamente. Ora, o fato de certos fumantes descartarem cinzas e bitucas inadequadamente não autoriza ninguém a insultar sua inteligência.

O cartazinho ainda ofende (não só com o sarcasmo, mas com todos os problemas listados aqui) todos os não fumantes que, para entrar em casa, inevitavelmente têm de passar por ele. Também envergonha todos os moradores, porque as visitas deles, ao entrarem no prédio, também acabam lendo esse cartazinho tosco. Eu, se fosse meu visitante, não teria dúvidas: “é, o Guri mora num cortiço.”

Administrativamente, é inútil. Duvido que algum fumante se sinta incentivado a abandonar ou tenha efetivamente abandonado sua conduta inadequada por causa desse cartazinho.

Ortográfica e gramaticalmente, o cartazinho é… bah, ortográfica e gramaticalmente, ele não é.

Til na letra errada (“atençaõ”, “naõ”, “saõ”). Aquele acento de “pátio” que está mais no “t” do que no “a”. Ponto de exclamação e ponto de interrogação ao final: não há como saber se é um, se é o outro, ou se são ambos. Sujeito separado do predicado por uma seta feiosa. “Atenção”, dois-pontos, “Fumantes”, dois pontos: obviamente, quem escreveu o cartazinho nem sonha em saber o que seja vocativo.

Por fim, temos a “Adm.” (que deve ser sigla para “Administração”) se dizendo “gratos” em vez de “grata”. E se a intenção foi agradecer em nome de todos os moradores (“gratos”), deixo registrado: a Adm. signatária desse cartazinho não me representa. #nãomerepresenta mesmo.

A agressão completa que esse cartazinho me impinge chegou a despertar em mim ímpetos vândalos, que até me envergonham. Pensei seriamente em descer à entrada do prédio numa noite qualquer e, no silêncio do sono dos vizinhos e da Adm., sem correr o risco de ser visto ou ouvido, arrancar o tal do cartazinho.

Mas esse não seria eu. Se não afixei eu o cartazinho, não seria meu o direito de arrancá-lo.

Por outro lado, se não têm bom senso nem os fumantes que jogam cinzas e bitucas pelas janelas e nos pátios e jardins nem a Administração que afixa cartazinhos imbecis, alguém que tem bom senso deveria tomar uma atitude. E se a atitude contra os fumantes transgressores é mais difícil, a atitude contra a Administração parece bem simples: arrancar o cartazinho.

Mas eu não sou polícia estética, social, administrativa, ortográfica ou gramatical. Não arranco.

Se bem que, nesse mundo de comportamentos absurdos, talvez uma polícia dessas viria bem. Arranco.

Ou talvez eu seja dramático e exija muito de mim mesmo, dos outros e do mundo. Talvez mais absurda que os comportamentos do mundo seja minha inquietação extremada por causa daquele cartazinho. Talvez eu simplesmente devesse deixá-lo estar. Não arranco.

Mas talvez, se eu arrancasse o cartazinho, conseguiria, junto com ele, arrancar do mundo um pouquinho do comportamento absurdo que faz faz minha alma doer…

Arranco ou não arranco?

Advento branco

Acordei hoje de madrugada com muita sede. Fui à cozinha e, ao beber um copo d’água, espiei pela janela. Uma camada de branco sobre o parapeito me surpreendeu. Neve? Em Porto Alegre? Em dezembro?

Corri para pegar o celular para registrar em foto e enviar para toda a família e para os amigos e postar no Twitter e no blog para compartilhar com o mundo todo (e talvez ser o primeiro a fazê-lo) esse evento espetacular: neve em Porto Alegre em dezembro!

De celular na mão, voltei à cozinha e abri a janela para tirar a foto – ou, antes, para ver se me convencia de que aquilo não podia ser verdade. Mas ao abrir a janela confirmei que era mesmo neve o que eu tinha visto sobre o parapeito. Senti um vento gelado entrar no apartamento. E vi claramente que flocos brancos finíssimos ainda caíam do céu.

Nisso, acordei num susto, pulando da cama. Rápido! A câmera! Demorou uns instantinhos para acordar de verdade. É claro que não estava nevando em Porto Alegre em dezembro. Tinha sido um sonho.

Peguei o celular: 6h da manhã. E apareceu uma notificação de um e-mail enviado pela minha irmã Ca, na Alemanha, recém recebido. Começava assim: “Quando a persiana abriu, Isabel e Felipe [meus sobrinhos gêmeos, de 2 anos] apontaram e disseram: NEVE!”

Vendemos smoothies (ou não)

Contrariamente às recomendações de um sem-número de amigos, colegas de trabalho, chefe, primas, tias, irmãs, minha mãe, entre outras pessoas cujas opiniões têm um alto (mas obviamente relativizável) valor para mim, às vezes eu não almoço.

Sejamos justos aqui. Eu almoço quase todos os dias. Às vezes, quando não almoço, é porque jantei fora na véspera ou porque pretendo jantar fora no mesmo dia; é uma compensação calórica. Outras vezes, para honrar (ou ludibriar) as pessoas mencionadas no primeiro parágrafo, eu saio do escritório na hora do almoço rumo a um café-restaurante nas redondezas para, em lugar do almoço, tomar um smoothie.

Foi o que fiz hoje, um daqueles agradáveis dias tórridos de Porto Alegre em que a gente se arrepende com amargura de ter deixado o sobretudo em casa. Chegando ao café-restaurante, vi que o cartaz com os sabores de smoothies não estava afixado. “Bah, será que isso quer dizer que vou ter de almoçar?” Mas não custava perguntar.

Quer dizer, achava eu que não custava perguntar.

– Vocês não vendem mais smoothies?

A moça do balcão se voltou à dona ou gerente do café-restaurante:

– Nós ainda vendemos smoothies?

A dona ou gerente do café-restaurante se voltou a mim:

– Ah, sim. Mas agora não posso preparar; estou bem atrapalhada.

[Pausa para perplexidade e reflexão.]

Forjei um sorriso e disse:

– Ah, ok. Obrigado.

Juntei minhas coisas da mesa que já tinha reservado e fui saindo dali. Fiquei pensando se não deveria ter pedido desculpas pelo incômodo à gerente do café-restaurante. Também, que ideia a minha: pedir um smoothie em um café-restaurante que vende smoothies!

Mas já era um pouco tarde para arrependimentos. Para a alegria geral das pessoas mencionadas no primeiro parágrafo, eu já estava rumo a outro restaurante – para almoçar.

Entre o sono e a vigília

Outrora eu sonhava longos sonhos sonhados ao longo de longas noites de soninho. Na infância e na adolescência, as tramas dos meus sonhos costumavam ser tão elaboradas e fantasticamente dotadas de uma tal falta de sentido que rendiam belas histórias. Aliás, um dos meus projetos de criança (sei lá em que série do ensino fundamental eu estava) foi escrever um livrinho sobre alguns dos meus sonhos mais memoráveis (mas dos quais hoje, mesmo assim, já me esqueci).

Atualmente, porém, minha vida é mais dinâmica, minhas noites são mais curtas, meus sonhos são mais rápidos – mas não menos perplexificantes. Ontem, por exemplo. Nem sei se foi um sonho, um pesadelo, ou um relâmpago de pensamento desorientado que ocorreu precisamente naquela fração ínfima de segundo em que se deu a transição do sono para a vigília.

A linha do tempo foi mais ou menos assim (cada “instante” significa a milionésima parte da menor duração imaginável):

  • Instante 1, ainda em sono profundo: “zzz…”
  • Instante 2, um pesadelo jurídico: “tenho de saltar rápido da cama para ir logo ao escritório e conseguir para o cliente a homologação da sentença penal estrangeira condenatória à morte.”
  • Instante 3, já bem desperto: “hã?”

Há tantos problemas com o pesadelo jurídico do instante 2 que fica até difícil decidir por onde começar a explicar, mas vamos lá. Trabalho com Direito Civil e Contratos; jamais lido com Processo. No escritório, ninguém atua na área de Direito Penal. E, como se não bastasse, a solicitação do cliente é absurda, porque o Brasil não admite a pena de morte (ok, salvo aquela exceçãozinha) e, por isso, jamais homologaria sentença penal estrangeira condenatória à morte.

Preciso dormir – agora, em particular, mas mais, em geral…

Desafio

Tenho outro blog, em idioma estrangeiro: a blog with an accent. Nesses meus tempos de tpg tpg (tempo de postagem do guri a bordo dos transports publics genevois, o sistema de transporte coletivo de Genebra), tem sido mais complexo (tecnologicamente falando) postar neste blog que naquele.

Explico. O idioma do outro blog prescinde de acentos, tis e cedilhas, esses sinaizinhos que meu Blackberry estadunidense (a ferramenta de postagem itinerante) se nega a fazer. Por outro lado, neste blog em idioma portugo-brazuca, esses sinais fazem muita falta!

Sempre que uso o Blackberry para postar no blog do Guri, preciso revisar o texto com cuidado no computador, acrescentando os acentos faltantes. Bem que eu gostaria, mas somente com certa dificuldade conseguiria escrever um post inteiro escapando de palavras acentuadas.

Com dificuldade, mesmo, mas hei de conseguir! Pelo menos por enquanto, tenho conseguido esse feito heroico! Espero que o leitor nem tenha notado a essas alturas e que esteja pensando que a falta de palavras acentuadas nem prejudica tanto assim o texto. Assim espero, mas duvido muito. Nosso idioma tem muitas palavras com acentos. Evitar o uso delas implica renunciar a muitos recursos e limitar de forma significativa a escrita.

Nada a ver com nada, mas este desafio de escrever um post sem acentos marca o fim do tpg tpg. Quer dizer, o tempo de postagem do guri continua, mas de outras bandas, porque termina este findi minha temporada de quatro meses em Genebra! Talvez ainda venha algum post com relatos e fotos dos passeios finais (recebo visita daqui a algumas horas!), mas, no mais, era isso.

Daqui a alguns dias tem mais!

Ok, admito que a frase anterior serviu pura e simplesmente para enrolar o esperado fim do post. O mesmo se pode dizer da frase que veio em seguida, bem como desta frase que vais teminar de ler assim que venha um ponto-final. (Ei-lo!)

Contudo, por mais que eu seja em tudo um ser obstinado e por mais que tenha pegado gosto do desafio de escrever sem usar palavras acentuadas (e nota-se bem que de fato peguei gosto), esse disparate tem que parar em algum momento e de alguma forma.

Basta, pois.

Armadilha

Eu vinha atravessando a Avenida República, em Pelotas, voltando da casa da minha vizinha e amiga de infância para a casa dos meus pais. Fui direto ao portão da garagem – “porta dos fundos” por onde eu costumava entrar em casa.

Para minha surpresa e insegurança, embora não houvesse ninguém em casa, o portão estava aberto. De novo! Poderia ser, de novo, o problema no sistema eletrônico do portão. Em dias de  tempestade, ele abria por si só, misteriosamente, sem ser acionado por ninguém. Ou então, poderia ser o pior: talvez o portão tivesse sido arrombado. De novo.

Ao aproximar-me da garagem, vi que os dois carros (o Fiesta preto e o Escort azul) estavam ali. Respirei com alívio – a possibilidade de arrombamento parecia menos provável. Senti-me seguro. Entrei na garagem e acionei o controle remoto para fechar o portão.

Mas à medida que o portão fechava – e assim me fechava dentro da garagem – comecei a ouvir um barulho estrondoso vindo de dentro de casa; aliás, era tão estrondoso que podia vir de dentro da própria garagem, de dentro dos carros ou até de dentro de mim mesmo. Era um barulho de colapso metálico… ou de uma explosão? Ou poderiam ser tiros!

Não sei. O que sei é que era um barulho horrorizante. Tive medo de estar preso em uma armadilha criminosa. Quis sair da garagem, para buscar ajuda, para fugir correndo, para me abrigar em outro lugar… Mas o portão estava quase fechado e eu, sem saída.

Gritei pelo meu pai, pensando que ele podia, afinal, estar em casa ou por perto – se bem que, a essas alturas do meu desespero, acho que na verdade estava chamando pelo meu Pai! Tudo se passava em frações de segundo eternas: o ruído aterrorizante continuava e o portão se fechava; eu estava em pânico e ninguém respondia ao meu grito de socorro.

Não cheguei a entender o que estava acontecendo, porque, ainda aterrorizado e gritando, acordei numa casa em uma silenciosa cidadezinha suíça.

Faz quase ano e meio que não vou a Pelotas e quase dois que não atravesso a Avenida República. A casa lá nem pertence mais à família – os dois carros tampouco! Essas coisas, agora, cheiram a antigo; nada disso me pertence. Mas antigos medos continuam a pertencer ao meu subconsciente (ou o meu subconsciente continua a pertencer aos medos?) de uma forma macabramente real e atual.

Astronomia

(Na verdade esta é mais uma aleatoriedade, em complementação ao post anterior, tanto que merece os cinco asteriscos. Aí vamos.)

* * * * *

Nas minhas aventuras fotográficas de longa exposição, tirei esta foto:

Lua minguante deslumbrante, certo? Foi o que pensei. Porém, no dia seguinte, observei que a Lua estava mais perto de cheia, e não de nova. No dia seguinte, ainda mais cheia.

Para tudo. Tem coisa errada. Lá nos meus tempos de antigamente (quando
“ensino fundamental” ainda era “primeiro grau”) me ensinaram que a parte iluminada da Lua faz um “C” quando a fase é crescente e um “D” quando é minguante. Era tão fácil de lembrar, aliás: “C” de Crescente, “D” de… “Decrescente”. Então como é que a Lua em D estava (e ainda está) crescente, cada vez mais cheia? Poderia ser mais uma das estranhices de Nova Iorque. Não me surpreenderia.

Durante a semana não tive tempo de investigar. Mas hoje finalmente liguei pra Lu, minha irmã e assessora para assuntos aleatórios, e perguntei se andaram mudando aí alguma dessas leis astronômicas. “Não que eu saiba.” Eu disse, “não pode ser que no hemisfério sul se veja a Lua de um jeito e, no norte, de cabeça pra baixo, né?” E ela disse, “claro, é assim mesmo.” E eu, “sério?” E ela, “não, né, tchê!”

Pois bem. Mesmo sendo domingo, cometi um terrível sacrilégio: depois do clássico almoço com o pessoal da igreja, entrei na biblioteca do Direito. NÃO, não pra estudar! Por favor! Eu tenho todo o resto da semana pra fazer isso (de forma inescapável). Entrei na biblioteca pra (1) blogar (o post anterior) e (2) corrigir essa história de Lua invertida:

Pronto: com uma inversão básica, a Lua crescente ficou em C na minha foto. “Ufa, bem melhor.” Isso me acalmou um pouco inicialmente. Mas continuei incomodado por ver Manhattan toda ao contrário, como se vista de um espelho. Consertei a Astronomia e estraguei a Geografia.

Então, aproveitando que estava mesmo na biblioteca, resolvi (3) googlar o mistério da fase lunar invertida. E descobri que a minha suspeita aquela estava certa: vista do hemisfério norte, a Lua faz um “D” na fase crescente e um “C” na fase minguante.

Meu mundo virou de cabeça pra baixo. (Bom, na verdade minha Lua virou de cabeça pra baixo.) Mais: essa coisa de ficar de cabeça pra baixo fez com que caíssem do meu bolso todos os butiá. Tenho que voltar ao Instituto (hoje: Instituto Estadual) de Educação Assis Brasil e achar minha professora de Geografia de sei-lá-que-série pra ter com ela uma conversa séria: “Me falaram da história do Cruzeiro do Sul e da Estrela Polar, mas como é que ninguém me disse que essa regra do ‘C de crescente’ não era universal?” Absurdo. Me sinto traído e enganado.

Duas páginas em dois dias?

Num dos textos que li pro mestrado esta semana apareceu uma referência a um episódio que aconteceu com o escritor Mark Twain – uma troca de telegramas muito interessante. Tive que achar o original. (Ah, adivinha onde achei? “Deu no New York Times!” O artigo, aliás, é bem legal; tem uns quantos exemplos de telegramas históricos.)

Um belo dia Twain recebeu de um editor o seguinte telegrama:

NEED 2-PAGE SHORT STORY TWO DAYS.
(PRECISO CONTO 2 PÁGINAS DOIS DIAS.)

Twain respondeu ao editor:

NO CAN DO 2 PAGES TWO DAYS. CAN DO 30 PAGES 2 DAYS. NEED 30 DAYS TO DO 2 PAGES.
(NAO POSSO 2 PAGINAS DOIS DIAS. POSSO 30 PAGINAS 2 DIAS. PRECISO 30 DIAS PARA 2 PAGINAS.)

Genial. De acordo. Escrever de forma concisa leva tempo e exige esforço. Tem tudo a ver com uma lição de McCloskey que citei aqui no blog alguns anos (!) atrás: redação fácil, leitura difícil. Sonho com o dia em que todos os habitantes do mundo das letras jurídicas aprendam que concisão é uma virtude e que verborragia não é sinônimo de produtividade nem de raciocínio apurado.

A hermenêutica das fotos dançantes

O comentário do Felipe ao post “Estilo importa” motivou uma resposta. Ia responder por e-mail, mas acabou que a mensagem virou um quase-post, que, com algumas adaptações, virou post. Voici.

Fico tão feliz quando “as pessoas” (tanto mais quando são grandes amigos e leitores qualificados!) comentam sobre e gostam do que escrevo. Afinal de contas, escrever dá trabalho, blogar dá trabalho… Ter um reconhecimento de vez em quando é bom e me motiva a continuar. 🙂

Imagina: ter o meu texto dissecado num vestibular seria uma honra enorme! Um dia, quem sabe. Outro dia, talvez, vou publicar um artigo no American Journal of International Law. Um dia, quem sabe, alguém vai me pedir uma carta de recomendação! Deve ser muito legal estar “do lado de lá”. (Aspas, ponto.) Um dia, espero.

Embora não seja professor, gostei do exercício de hermenêutica proposto pelo Felipe:

“Vimos fotos tuas dançando […] na minha formatura”.

(Aspas, ponto. Se a frase do Felipe terminasse com “na minha formatura”, poderia muito bem ser: “Vimos fotos tuas dançando […] na minha formatura.” Ou seja: ponto, aspas. E sem ponto depois das aspas.)

Abstraindo do contexto, consigo pensar nas seguintes interpretações para a frase (claro que apenas a primeira é séria):

  • Martin dançou na formatura de Felipe. Esse momento tragicômico foi registrado em fotos. Karina e Felipe viram essas fotos recentemente.
  • Martin tirou fotos durante a formatura de Felipe. Um dia desses, Karina e Felipe dançavam, enquanto viam (sei lá, num telão) essas fotos.
  • Martin aparece em fotos tiradas durante a formatura de Felipe. Um dia desses, Karina e Felipe dançavam, enquanto viam (num telão, de novo?) essas fotos.
  • Martin tirou certas fotos. Elas foram exibidas (num bom e velho telão) durante a formatura de Felipe. Karina e Felipe, enquanto dançavam durante a formatura, viram essas fotos.
  • Martin aparece em certas fotos. Elas foram exibidas (onde? que tal num telão?) durante a formatura de Felipe. Karina e Felipe, enquanto dançavam na formatura, viram essas fotos.
  • Martin tirou fotos durante a formatura do Felipe. Um dia desses, essas fotos estavam dançando por aí. Karina e Felipe viram as fotos dançantes.
  • Martin aparece em fotos tiradas na formatura de Felipe. Um dia desses, essas fotos estavam dançando. Karina e Felipe foram testemunhas oculares da dança das fotos.
  • Martin tirou certas fotos. Elas dançaram na formatura de Felipe. Na ocasião, Karina e Felipe viram as fotos dançantes.
  • Martin aparece em certas fotos. Elas dançaram na formatura de Felipe. Na ocasião, Karina e Felipe viram as fotos dançantes.

Tudo bem, admito que me puxei um pouco. Mas me justifico: enquanto escrevo este post-resposta, percebo que meu colega de apartamento está ouvindo valsas vienenses. Não tenho bem certeza, mas acho que é Johann Strauss.

(O autor das valsas vienenses, não o meu colega de apartamento! Mais: o autor das valsas e o meu colega de apartamento não são a mesma pessoa! Bah, bem que eu gostaria que fossem, mas ele está morto. [Quem morreu foi Strauss, faz mais de um século. Meu colega de apartamento está vivo e ouvindo Strauss. {Meu colega de apartamento está ouvindo músicas que Strauss compôs; não está ouvindo o próprio Strauss.}])

Divagações à parte: ouvindo a música, fiquei imaginando fotos que dançam ao som de valsas vienenses. Neste momento, Vir (minha mamá greco-argentina) perguntaria: “¿fumaste cosas raras?

(Ponto de interrogação, aspas. A interrogação faz parte do que Vir perguntaria. E não há necessidade de ponto final depois das aspas: o ponto final faz o serviço.)

Aparentemente não consigo mais não divagar nos meus posts.

(Prova disso é que aqui me obrigo a fazer mais um comentário parentético metadiscursivo: o que acabo de dizer, “não consigo mais não divagar”, é algo que a minha professora de escrita jurídica desaconselhou um dia desses – dupla negação.)

Divagações à parte, segunda tentativa: não, não fumei cosas raras. Nunca fumei. É tudo efeito das valsas vienenses.

Paro por aqui. Preciso dançar.