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O editor de texto é teu amigo

Estejas escrevendo uma minuta de contrato a partir de uma folha em branco ou revisando uma preparada pela pessoa com quem vais contratar, um aspecto é essencial: precisas conhecer bem teu editor de texto e usar as ferramentas que ele disponibiliza:

  • Se estiveres na pele de revisor, usa controle de alterações. Assim, sinalizas tua intenção de negociar de boa-fé e com transparência, sem alterar sorrateiramente a minuta para passar o outro contratante para trás. Lembrete básico: sem um mínimo de confiança não há contrato.
  • Se te couber preparar a primeira minuta, pede ao outro contratante que, ao revisá-la, use controle de alterações. Se ele não o fizer (por não saber ou, cuidado!, por não querer ser transparente), podes fazer isso por ele: quando te devolver a minuta alterada, usa a comparação de documentos para compará-la com a minuta inicial.
  • Usa comentários para esclarecimentos ou questionamentos sobre pontos específicos da minuta (palavras, expressões, cláusulas). Inserir esses esclarecimentos ou questionamentos ao longo do texto – por exemplo, EM LETRAS TODAS MAIÚSCULAS, ou em fonte de outra cor, ou em negrito, itálico e sublinhado – é confuso, trabalhoso e um pouco histérico. Se há uma ferramenta específica e automática para comentários, por que não usá-la?
  • Forma é importante: não é perfumaria. É preciso pensar em legibilidade, para viabilizar a leitura fluida do contrato. Para isso, usa fontes não muito heterodoxas, como Arial e Times New Roman, que são de fácil leitura e certamente estarão no computador do outro contratante. Usa tamanhos de fonte razoáveis, entre 10 e 12 pontos, para o texto (se for um contrato regido pelo Direito do Consumidor, não há opção: precisa ter 12 pontos!). Pensa num espaçamento entre linhas que te pareça confortável: para mim, espaço simples é pouco, mas duplo é muito. As margens da página também devem ser razoáveis (não muito grandes nem muito pequenas) e equilibradas; melhor se todas (superior, inferior, direita e esquerda) forem iguais (2 cm, 1 polegada = 2,54 cm, ou 3 cm).
  • Forma é importante, mas conteúdo é muito mais, certo? Por isso, automatiza tanto quanto possível a formatação da minuta, para ter mais tempo de pensar no conteúdo. Uma forma interessante de fazer isso é criar um modelo com estilos diferentes para títulos de cláusulas, textos de cláusulas, textos de subcláusulas etc.
  • Uma cláusula com título “CLÁUSULA VINTE E CINCO – DA MULTA” tem exatamente o mesmo valor jurídico de uma com título “25 [tabulação] MULTA“. Há quem diga que a primeira forma é mais clássica e, por isso, mais bonita. Eu, que sou superclássico em muito ou quase tudo, discordo: recomendo a segunda, por ser mais objetiva, legível e funcional. Imagina se algum dos contratantes inventa, em algum momento da negociação, de incluir uma cláusula antes dessa: a Cláusula Vinte e Cinco passará a ser Cláusula Vinte e Seis; a Cláusula Vinte e Seis passará a ser Cláusula Vinte e Sete… Quem tem tempo para ficar redigitando tudo isso?
  • Mais que objetividade nos títulos, recomendo numeração automática de cláusulas. Fez bem mais sentido usar um sistema numérico em níveis, como “11.1 1.1.1“, que um clássico “Cláusula Primeira ( = 1), Parágrafo Primeiro ( = 1.1), Alínea Primeira ( = 1.1.1)”. A numeração automática, além de ser mais objetiva e legível, é mais funcional: permite o uso dos itens numerados como indicadores, aos quais se podem fazer referências cruzadas. Essas ferramentas serão muito úteis em contratos longos, para garantir que referências como “nos termos da Cláusula 25” sejam automaticamente corrigidas para “nos termos da Cláusula 26” se uma cláusula for acrescentada antes da Cláusula 25, fazendo com que ela se torne 26.

Felizmente se foi a época em que contratos precisavam ser escritos à mão ou numa máquina de escrever. Editores de texto podem não ser tudo de bom, mas sem dúvida permitem tornar bem mais eficientes a negociação, revisão e redação de contratos. Não aproveitar esse ganho de eficiência é ser [relativamente] ineficiente. Desconhecimento das ferramentas não é desculpa, principalmente para o advogado: no mínimo, gera uma obrigação de aprender a usá-las – ou de retirar do currículo aquela linhazinha que diz “domínio de programas da suíte MS Office”.

Meu blog, minha vida

Criei a página martinbrauch.com no facebook, por onde vou canalizar os textos que publico aqui. Também atualizei a versão do WordPress do site. Reorganizei as categorias, como se pode ver na lista à direita. E enfim concluí e incluí as informações do autor e de contato – o menu “SOBRE”.

À medida que realizei essas tarefas ao longo do final de semana, revi (ainda que superficialmente, em alguns casos) cada um dos mais de 400 textos publicados neste site. Em dois dias, revivi os últimos sete anos. Relendo os textos, eu me senti exatamente como me sentia quando os escrevi. A experiência foi, ao mesmo tempo, emocionante e assustadora (eu não esperava por ela).

A alegria e a expectativa após ser aprovado para o Mestrado na NYU. A angústia de não conseguir uma bolsa de estudos. As delícias de viajar e conhecer outros mundos. Minhas características constantes: a busca pelo artístico (a Fotografia, a Música), a reflexão, a crítica, a nostalgia.

Todos os registros escritos confirmam quem sou. Eu agora sou essencialmente o mesmo que sempre fui; agora apenas conheço melhor a minha essência (e agora mais) (e agora ainda mais). E reconheço no exercício de manter um blog uma ferramenta útil para o autoconhecimento.

Sim, os textos que escrevi e publiquei contam a respeito de quem sou e de meus sentimentos em tempos específicos. Mas há também um aspecto não tão trivial: os textos que não escrevi também contam sobre mim e sobre o que vivi. O silêncio, no meu blog como na Música, pode ser solene e significativo. Os intervalos silenciosos (normalmente seguidos de pedidos de desculpas aos leitores!) até resultaram, em alguns casos, de falta de tempo para escrever, mas, em regra, corresponderam aos meus momentos de maior ansiedade, num sentido bem autodestrutivo.

Por fim, rever os 400 posts e reviver os sete anos também me fez lembrar da minha motivação primeira para começar um blog: escrever pelo gosto de escrever. Comunicar “porque sim“, nos termos do primeiro post publicado. Hoje eu também poderia dizer: escrever simplesmente pelo bem de produzir conteúdo original, num mundo cada vez mais (mal-)acostumado a não produzir, mas apenas replicar, em suas diversas formas: encaminhar, retweetar, compartilhar.

Quem nunca assinou um contrato?

Depois de seis anos (regulares) de Bacharelado em Direito, dois de Especialização em Direito e um semestre de Mestrado em Direito, foi, acredita se quiseres, no segundo semestre do Mestrado que redigi pela primeira vez um contrato, avaliado por um professor, num contexto acadêmico.

É um pequeno ressentimento que tenho quanto à formação jurídica que tive na UFPEL. Lá fui bastante bem capacitado e avaliado quanto ao conhecimento teórico sobre o Direito. Porém, as aulas de prática jurídica enfatizavam apenas uma das competências necessárias ao advogado na área contenciosa: redigir peças processuais. A prática jurídica que tive lá abrangeu bem a prática processual, mas não a contratual, nem a societária, nem a consultiva.

A UFPEL não me ensinou a escrever um contrato, mas felizmente supri essa deficiência no Mestrado. Na NYU, fiz a disciplina de U.S. Legal Methodology (“Metodologia Jurídica dos EUA”, digamos assim), que abordou técnicas de mediação, de negociação e de redação de contratos e memorandos (para advogados ou clientes). Foi essencial para completar minha formação.

Há quase dois anos (16 de setembro de 2011) comecei a trabalhar na área contratual de um escritório de advocacia. Desde então, negociação, redação e revisão contratual fazem parte do meu cotidiano profissional. Não sou um veterano, claro. Mesmo assim, graças a essa experiência de dois anos e à minha formação acadêmica sólida, tenho senioridade (“ai, minhas juntas…”) suficiente para dar diversas dicas sobre contratos.

Acho que minhas dicas podem valer tanto para o advogado, esse (n)(p)obre profissional que faz contratos escritos sob encomenda, quanto para qualquer pessoa. Afinal, cada um de nós inevitavelmente se colocará em algum momento na pele de contratante, tendo de assinar um contrato de trabalho, de locação, de promessa de compra e venda, de prestação de serviço…

Por isso, vou publicar uma série de textos sobre negociação, revisão e redação de contratos.

Começando pela colocação mais básica possível, sem querer insultar a inteligência do leitor, “contrato” significa, em linhas bem gerais, “acordo de vontades”; normalmente se chega a esse acordo após a negociação de uma “minuta”, que é um rascunho inicial. Prometo que a frase anterior será a mais acadêmica desta série de textos: a partir do próximo, só considerações práticas sobre cuidados importantes na negociação, revisão e redação de um contrato.

Se não saio do cortiço, o cortiço sai daqui

Surgiu um cartazinho afixado no meio da porta de entrada do edifício onde moro. Mas agora, diferentemente da outra vez em que isso aconteceu, não chego a pensar em arrancá-lo.

Esteticamente, o anterior era horrendo, mas o atual até passa. O uso de caixa alta é agressivo, mas perdoável. Um pouquinho mais perdoável porque o redator cuidou de usar versalete, pelo menos no título e na última frase; só se descuidou na primeira frase – perdoável.

Socialmente, o anterior era grosseiro, principalmente por ser sarcástico, mas também pela sua forma tosca. O atual transmite uma mensagem importante, não necessariamente óbvia aos moradores. Apesar de um pouco pedante (“vimos por meio deste” foi um pouco excessivo), é simpático: mérito das palavras “solicitar” e “colaboração”, que são simpáticas.

Administrativamente, o anterior era inútil; como eu havia dito, dificilmente algum fumante se sentiria incentivado a tomar uma atitude por causa do cartazinho. Prova disso é que, depois da publicação do cartazinho petulante, eu mesmo vi pessoas fumando e descartando cinzas nos jardins. (Pausa para embasbacamento.) Quase colei um cartazinho na testa dos transgressores.

O cartazinho atual, porém, pode ser bastante eficaz. No meu apartamento já foi instalada a “chapinha para furo do gás”; não fosse o caso, o cartazinho me serviria de lembrete.

Gramaticalmente, o cartazinho petulante anterior era um absurdo. O atual não chega a ser um absurdo gramatical; apenas contém uns absurdinhos gramaticais:

  • “Vimos por meio deste, solicitar…”: “Por meio deste” deveria estar entre vírgulas (“Vimos, por meio deste, solicitar…”) ou, para os mais permissivos (nem todos concordariam), deveria não estar entre vírgulas (“vimos por meio deste solicitar…”). Ou seja, faltou ou sobrou vírgula. Mesmo assim, perdoável, em consideração ao acerto do “vimos”: muita gente teria escrito “viemos”, que é passado, em vez de “vimos”, que é presente e, neste caso, mais adequado.
  • “[S]olicitar que deve ser agendado […] a colocação”: “Solicitar que deve” é uma expressão que não faz muito sentido, não? Ficaria melhor dizer “solicitar que seja agendado“, já aproveitando para usar o subjuntivo, que aqui cabe melhor. E ficaria ainda melhor livrar-se dessa voz passiva, “ser agendado”, e dizer “solicitar que agendem”, já que o pedido é aos condôminos (“solicitar que [os Srs. Condôminos] agendem”). Com isso, já se resolveria também o problema de concordância do “agendado […] a colocação”: a colocação é agendada, claro, não agendado. Enfim: “solicitar que agendem […] a colocação”. De novo, perdoável, compensando com o aposto devidamente colocado entre vírgulas (“Sr. Antônio”).
  • “[A] colocação da chapinha para furo do gás, que é obrigatório por lei e será vistoriado pelos bombeiros no próximo PPCI”: O que é obrigatório por lei e será vistoriado pelos Bombeiros (aliás, com maiúscula, porque se refere ao Corpo de Bombeiros)? Temos duas palavras masculinas: “furo” e “gás”. O furo ou o gás são obrigatórios e serão vistoriados? Não. A colocação da chapinha! Usar o feminino, “que é obrigatória por lei”, causaria ambiguidade: obrigatória é e vistoriada será a “colocação” ou a “chapinha”? Eu resolveria com um ponto e repetiria “colocação”: “A colocação da chapinha é obrigatória e será vistoriada…” ou “Essa colocação é obrigatória e será vistoriada…”. Pronto. De qualquer forma, também perdoável, em homenagem à frase final, tão educada. “Cooperação”, sua linda.

Considerando as críticas gramaticais acima, não se pode dizer que eu esteja mais tolerante (!), mas perdoo com mais facilidade quando reconheço a melhoria de qualidade geral que houve do cartazinho petulante para o atualmente afixado. Ou então só estou mais cômodo quanto ao cartazinho atual porque o que me incomodava no anterior não era a gramática, mas o sarcasmo, a forma tosca, o mau gosto, a grosseria. Não encontrei esses pontos de incômodo no novo cartaz.

Se não saio do cortiço, aos poucos o cortiço vai saindo daqui. A administração do condomínio ganhou um pouquinho mais do meu respeito. (Será que a síndica lê meu blog? #not)

Muito prazer

Desde que mudei o blog para meu site estou por preparar uma página de autoapresentação. Definir-se é difícil, por isso estou atrasado na tarefa. Falta um pouco de coragem.

Um dia desses eu me lembrei que tive de escrever uma autoapresentação na disciplina de Linguística e Comunicação, que fiz no Curso de Jornalismo da UFRGS há quase dez anos. Resgatei o texto, escrito em 23/03/2004. Seguem alguns fragmentos atualizados e adaptados:

Algum tempo atrás fiz uma profunda interpretação etimológica a respeito do meu nome. Martin é um nome de origem latina, relacionado ao deus da guerra, Marte, e portanto tem algo a ver com guerra, guerreiro, belicoso. Dietrich é uma palavra em alemão usada para designar uma chave falsa em forma de gancho. E Brauch, enfim, é uma palavra também alemã que significa uso, costume, modo tradicional de uma determinada sociedade pensar, sentir e sobretudo agir. Não sei se “homem belicoso que usa uma chave falsa em forma de gancho para arrombar os costumes socialmente arraigados” seria uma definição adequada para mim. A verdade é que, em vez de tudo o que meu nome sugere, sou bem tranquilo.

Mas meu parto não foi lá muito tranquilo. Nasci quase enforcado no cordão umbilical. Não tive sequelas; conseguiram literalmente tirar-me da forca. Nasci no dia 4 de maio de 1985, às 20 horas e 30 minutos, em noite de Lua cheia e eclipse de Lua.

Cresci sobrelevado por exigências e autoexigências. Para meu pai, ter êxito como estudante era apenas uma obrigação minha. Acabei herdando essa concepção. Não pretendo atormentar meus filhos sobrinhos com ela, mas adoto essa exigência para comigo mesmo. Vivi um padrão de qualidade total nos estudos – e sigo vivendo no trabalho.

Meu foco foram os estudos (em Economia, Direito, Direito Ambiental, Direito Internacional). Mas já fiz umas coisas bem interessantes. Já participei de conferências da ONU sobre mudanças climáticas, de olimpíada de química e de concursos de redação. Já publiquei artigos no jornal e criei um jogo sobre meio ambiente. Já toquei em orquestra, cantei em coros e regi coros. Já viajei bastante (e pretendo viajar ainda mais). Gosto de ler, escrever e pensar em português e em línguas estrangeiras – inglês, espanhol, francês.

A vida como ela não deveria ser

Por amor, acidente ou álcool, ou alguma combinação dos anteriores, somos concebidos. Nove meses depois, estoura uma rolha, e a vida começa a ser despejada.

No começo, o líquido flui aos berros e prantos. Aos poucos, para uns de nós, os berros e prantos silenciam; para outros, aumentam; para ainda outros, tornam-se risos ou até gargalhadas.

Construímos relacionamentos com familiares, amigos, colegas, pessoas dos mais diversos círculos. Construímos também esperanças, conhecimento, carreira, patrimônio.

À medida que a vida flui, produzimos, consumimos, descartamos. Cuidamos de nós mesmos de forma excessiva, equilibrada, ou insuficiente. Buscamos bem-estar, prazeres e entretenimento.

Encontramos namorados, companheiros, esposos. Ou não. Por amor, acidente ou álcool, ou alguma combinação dos anteriores, causamos o estouro de outras rolhas. Ou não.

Destruímos relacionamentos com familiares, amigos, colegas, pessoas dos mais diversos círculos. Destruímos também esperanças, conhecimento, carreira, patrimônio.

O volume despejado vai diminuindo até que a garrafa se esvazie. Do relevante, fica apenas nossa memória, para ser julgada, justa ou injustamente, por outras garrafas que também se esvaziam.

Paternidade

Tenho sobrinhos e afilhados gêmeos, um casal. São as pessoinhas mais amáveis e, ao mesmo tempo, terríveis. Nisso, nada de anormal: são crianças saudáveis de três anos de idade que têm toda a energia do mundo pra gastar. Brincam e fantasiam como se não houvesse amanhã e como toda criança deveria poder fazer.

São dessa geração que intuitivamente acha que todo display é obviamente touch. (Afinal, a ideia de um que não seja é incompreensível, inconcebível.) Pela exposição à informação e às tecnologias, vivem num mundo já bem diferente daquele em que seus pais cresceram. A diferença entre o mundo dessas crianças e o de seus avós, então, é tão abismal que nem vou começar a diferenciá-los.

Como tio, sou responsável por contribuir da melhor forma possível para o desenvolvimento integral dos dois pimpolhos. Um dia desses saí a procurar um DVD educativo para mandar de presente a eles. O que encontrei foi uma dificuldade surpreendente numa tarefa que deveria ser tão simples para quem mora a cinquenta metros de uma livraria.

Foi muito difícil escolher, não só porque há muitas opções, mas também porque muitas são de gosto ou moral questionáveis. Não quero dar exemplos, para não fazer crítica editorial. Para meu argumento basta dizer que não me senti 100% confortável com nenhum dos DVDs. Escolhi dois, mas aconselhei minha irmã a verificar se eram de fato adequados, antes de os reproduzir para as crianças.

E foi aí que me dei conta: como pais, minha irmã e meu cunhado teriam de fazer isso de qualquer forma. Se a responsabilidade pesa sobre os ombros de um tio a milhares de quilômetros dos sobrinhos, imagina sobre os deles. Sustento material e nutricional, saúde física e emocional, educação formal e informal, desenvolvimento moral e espiritual — a responsabilidade dos pais alcança todos esses aspectos da vida dos filhos, especialmente na primeira infância, mas até a maioridade (no sentido intelectual, não no jurídico).

Ontem foi Dia dos Pais. Minha reflexão, embora diga respeito tanto a papais quanto a mamães, aconteceu espontaneamente num momento significativo do ano. Refleti sobre a responsabilidade que meu pai e minha mãe tiveram e ainda têm pela minha formação como ser humano completo. Refleti, olhando para minha irmã e meu cunhado, pais há poucos anos, sobre a responsabilidade que já têm e ainda terão na formação dos dois pimpolhos amados deste titio babão que escreve. E também refleti, olhando para um casal de amigos que está esperando um bebê, sobre as responsabilidades que já têm e sobre as que logo virão.

A ambiguidade que é linda

Como os textos dos últimos dias foram bem densos, hoje vou pegar mais leve. Ao escrever o texto de ontem, sobre e contra a não conjunção “e/ou”, passei rapidamente por Machado de Assis, para tratar não de “e/ou”, mas de ambiguidade:

A ambiguidade, quando intencional, pode ser linda. É recurso literário. Afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho com Escobar? Não há como saber. Ainda bem.

Se não sabes a que livro faço referência, visita este link e só volta a ler este post depois de ler todo o texto do link. Aliás, só volta a fazer qualquer outra coisa depois de ler todo o texto do link. Por favor.

Quem já leu Dom Casmurro ou outras obras de Machado de Assis está dispensado de clicar no link acima e pode continuar lendo este post (eu deixo), porque já foi convidado a conhecer a beleza da ambiguidade na Literatura e sabe o que eu quero dizer.

Li uma entrevista muito interessante com o professor Berthold Zilly, que fez uma versão em alemão de Memorial de Aires. Ele falou sobre o estilo de Machado de Assis e as dificuldades que impõem ao trabalho do tradutor:

A ambiguidade, a falta de definição […,] é um princípio tanto da visão do mundo como da visão do homem, bem como do estilo, do manejo das palavras e da construção da sintaxe de Machado de Assis. Uma certa falta consciente de definição e clareza. Tudo é um pouco dúbio e vago. Também em termos morais. É difícil saber o que é bom e mau, real e ficção e qual o sentido exato das palavras e frases. […] Traduzir é sempre complicado, e Machado de Assis em especial.

Recomendo a leitura do texto integral da entrevista.

E, claro, também recomendo a leitura de Machado de Assis.

Manifesto contra o “e/ou”

Normalmente se explica o uso de “e/ou” com base na necessidade de expressar que algo pode ser só uma coisa, ou só outra coisa, ou ambas ao coisas simultaneamente. Um bom exemplo é o texto que a Wikipédia inclui nas páginas marcadas para revisão:

Esta página foi marcada para revisão, devido a inconsistências e/ou dados de confiabilidade duvidosa.

A página pode ter sido marcada para revisão só por causa da existência de inconsistências, ou só por causa da existência de dados de confiabilidade duvidosa, ou por causa da existência simultânea de inconsistências e de dados de confiabilidade duvidosa. Com o objetivo de prever todas essas possibilidades, a Wikipédia usou a expressão “e/ou”.

Esse argumento pode até explicar o uso de “e/ou”, mas não o justifica. “E/ou” tem um aspecto trágico que torna seu uso reprovável: pode gerar ambiguidade não intencional, uma dificuldade ou mesmo impossibilidade de interpretação.

A ambiguidade, quando intencional, pode ser linda. É recurso literário. Afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho com Escobar? Não há como saber. Ainda bem.

O problema é a ambiguidade não intencional e fora do contexto literário. No texto jurídico, por exemplo, ambiguidade não pode ter lugar.

Vamos supor que, ao redigir um contrato, as partes estabeleçam que a obrigação é “uma e/ou outra”. Se houver discussão judicial desse contrato, o credor argumentará que é a obrigação é “uma e outra”; o devedor, que é “uma ou outra”. O juiz, coitado, terá de decidir ou em favor de um ou de outro, porque as interpretações deles são logicamente irreconciliáveis. Não importa o que o juiz decida, nunca haverá certeza de qual seria a obrigação que as partes realmente pretenderam estabelecer. E isso só aconteceu porque não souberam redigi-la.

Ainda pior que a ambiguidade gerada pelo “e/ou” é sua falta de justificativa lógica e gramatical.

Meu dia será feliz se e somente se eu comer queijo doce de leite no café-da-manhã. Preciso comer queijo e doce de leite no café-da-manhã para ter um dia feliz. Se comer só queijo, ou se comer só doce de leite, não terei um dia feliz. O “e” exprime bem essa ideia de adição. A gramática lhe deu o nome feio de conjunção coordenativa copulativa.

Meu dia será feliz se e somente se eu comer ou queijo ou doce de leite no café-da-manhã. Aqui, a felicidade do meu dia fica condicionada ao consumo de um só desses itens no café-da-manhã. Se consumir queijo doce de leite, ponho tudo a perder (digamos, porque minha dieta vai para o espaço). O “ou… ou”, que é o responsável por indicar claramente que as alternativas são mutuamente exclusivas, recebe o nome feio de conjunção coordenativa disjuntiva exclusiva.

Meu dia será feliz se e somente se eu comer queijo ou doce de leite no café-da-manhãSe comer só queijo no café-da-manhã, serei feliz; se só doce de leite, também. E se comer os dois? De acordo com a lógica (dos matemáticos e dos gulosos), também. O “ou” usado na frase tem essa propriedade mágica de fazer com que as alternativas não se excluam mutuamente. Mesmo sendo mágico, esse “ou” foi punido com o nome feio de conjunção coordenativa disjuntiva inclusiva.

É nesse último caso que tende a surgir em alguns a tentação de usar “e/ou”. Como comentei logo no início do texto, o “e/ou” normalmente é empregado em situações em que pode ser uma coisa, ou outra coisa, ou ambas. Agora, por que usar “e/ou” se um simples “ou” exprime a mesma ideia, sem causar risco de ambiguidade?

“Mas um ‘ou’ não me parece suficiente para deixar claro que a felicidade do meu dia está garantida se no café-da-manhã eu comer só queijo ou só doce-de-leite, bem como se eu comer ambos”, diz o meu amigo excessivamente zeloso, e continua: “Nesse caso, não caberia usar um ‘e/ou’?” Minha resposta é, categoricamente, não, pelo risco de ambiguidade. Se o excesso de zelo requerer, sugiro o seguinte: Meu dia será feliz se e somente se eu comer queijo ou doce de leite, ou ambos, no café-da-manhãAplaquei a necessidade de ser zeloso, mas, francamente, não melhorei em nada a frase com o acréscimo desse “ou ambos”. O “ou”, sozinho, bastava.

Mas o vício do “e/ou” é difundido e chega a produzir absurdos — “e/ous” usados para conectar ideias mutuamente exclusivas. Basta googlar por “responsabilidade solidária e/ou subsidiária” e perceber que há resultados, quando não deveria haver. No Direito, a responsabilidade pode ser ou solidária ou subsidiária; não pode ser solidária subsidiária ao mesmo tempo.

Lógica, gramática e glutonaria à parte, concluo com mais alguns argumentos contra o “e/ou” (todos começando com a letra “e”, só porque me deu na telha):

  • Estética ou estilo: “E/ou” é deselegante. “Essa é a tua opinião”, diz meu amigo que leva tudo para o lado pessoal. Pode ser, mas não estou sozinho. Um número significativo de manuais de estilo e redação desaconselha o uso do “e/ou” justamente por ser deselegante e confuso.
  • Economia: Se em vez de cada “e/ou” que escrevi neste texto até aqui eu tivesse usado apenas “ou” (o que, conforme demonstrei, teria sido suficiente), teria economizado minha energia de digitar 30 caracteres e tua energia de ler 30 caracteres. A economia é significativa. E isso que só tratei de economia de energia.
  • Esmero na escrita: Se usei “e/ou”, é provável que tenha sido por ficar em dúvida entre “e” e “ou”, seja por não saber exatamente a ideia que queria expressar, seja por não querer parar para pensar sobre qual conjunção usar. Ora, se não sabia o que queria escrever, ou se tive preguiça de pensar antes de escrever, provavelmente não deveria ter escrito nada.

A importância de Chico Pedreiro

Embora de uma forma bem diferente da que eu imaginava na minha adolescência (mas o que eu imaginava não é o assunto deste post!), vivo da palavra. Como advogado consultivo, a palavra é meu principal instrumento de trabalho para interpretar o Direito, aconselhar clientes, redigir contratos e revisar (ou reescrever, em casos extremos) contratos preparados por outros.

Há poucos dias, conversando sobre redação com uma colega que pensa bastante como eu quanto ao assunto (ambos adotamos a definição de “escrever” como “a arte de cortar palavras“), chegamos à discussão sobre “certo” e “errado” na escrita. Nesse contexto foi que me me lembrei do texto do post anterior, que escrevi para uma disciplina de Linguística e Comunicação no Curso de Jornalismo da UFRGS, em 2003 (longínqua época em que Linguística ainda se escrevia com trema). Em homenagem ao décimo aniversário do texto, resolvi publicá-lo aqui no blog.

Normalmente não gosto do que escrevo, mas esse texto quase podia ser uma exceção. Observa que não chega a ser exatamente isso. Gosto do texto, pela ideia, pela mensagem, pela nostalgia. Hoje a nostalgia é dupla, porque diz respeito tanto ao tempo em que “desimportante não existia” quanto ao tempo em que, um dia por semana, eu viajava três horas e meia na ida de Pelotas a Porto Alegre e mais três horas e meia na volta, só para estudar Linguística na Úrguis.

Ao mesmo tempo, o texto me envergonha pelo pedantismo de primeiranista de Bacharelado em Direito, aquele pedantismo que muitos colegas juristas parecem levar consigo deliberadamente não só até o fim do curso, mas até o túmulo, para a desgraça das profissões jurídicas e, com um pouco de exagero aceitável, da humanidade. O texto me faz perceber o quanto minha redação hoje é menos metida a besta e mais concisa. Nesse sentido, gosto dele até porque não gosto dele; ele me provoca, como Camões talvez colocasse, um contentamento descontente.