De spam à biblioteca ao suicídio à arquitetura

Confesso que hesitei antes de pôr em prática, logo no primeiro post substancial após quatro meses mudos, a ideia de escrever um texto que tocasse em assuntos não muito agradáveis, como “spam” e “suicídio”. Depois percebi que poderia suavizar a coisa ao tratar, no mesmo texto, de “biblioteca” e “arquitetura”.

Foi com a frustração de um amigo arquiteto (oi, Mateus Coswig!) com minha “publicação para anunciar publicação” que afinal decidi escrever o texto. (Para não deixar dúvida: tomei a decisão porque ele é arquiteto e um pouco porque suponho que goste de bibliotecas; não porque [eu / ele] goste de spam ou suicídio.)

Spam já foi assunto aqui no blog há cinco anos. Aliás, virou categoria de (seis) posts, numa época em que eu recebia (de mim mesmo, aparentemente!) misteriosas mensagens bíblicas por e-mail. Agora tenho até saudade daquele devocional esquisito de que passei a gostar.

Spam é um dos objetos do meu excesso de zelo. O Gmail apaga automaticamente os e-mails não resgatados da caixa de spam depois de 30 dias do recebimento, mas eu não deixo isso acontecer. Cada dia dou uma olhadinha. Em dois ou três segundos leio as linhas de assunto, para me certificar de que o filtro de spam não pegou nada importante. Já encontrei e-mails que deveriam ter ido para a caixa de entrada; bastou para me fazer pensar que o zelo vale a pena. Na maior parte das vezes, não há nada mesmo de importante ali, porque o filtro é bastante bom, como a maioria das coisas no Gmail. (Não, a Google não me paga.)

Ao resgatar do silêncio este blog, aproveitei para limpar seu filtro de spam dos comentários. Havia centenas de comentários no filtro. Todos eram spam. Mas um deles, mesmo sendo spam, era interessante. Chamou minha atenção porque dizia respeito à Bobst.

A Elmer Holmes Bobst Library, ou simplesmente Bobst, é a biblioteca central da NYU. Nela eu muitas vezes estudei para o Bar Exam, o exame da ordem de advogados do Estado de NY. No verão de 2010 eu escrevi sobre essa rotina e compartilhei uma foto do “dilema Bobst”: um montão de coisas para estudar versus o convite ao verão em NYC.

Houve também o post em que contei sobre o dia em que achei que o elevador da Bobst cairia comigo dentro, mas aí já me excedi nas divagações nostálgicas.

Foi junto a um terceiro post, The Bobst Mysteries, que apareceu o comentário spam interessante. Ali eu tinha escrito sobre três aspectos que me intrigavam na seguinte foto, tirada do décimo andar da Bobst, olhando para baixo sobre o grande átrio central.

We are PEOPLE not PROFIT. Bobst.

Não carece repetir a história toda; só uma partezinha. O terceiro fator intrigante era o formato de cruz de cada haste da grade de proteção:

Por incrível que pareça, há quem consiga não se sentir suficientemente encorajado pelo vidro de mais de dois metros de altura e pelas grades a ficar com os pés firmes no corredor-galeria e a desistir da ideia de aprender a voar. Seria coincidência o formato das hastes das grades?

Eis que o comentário spam interessante dizia o seguinte (traduzo do inglês):

Não sabia onde postar isto, acabo de encontrar teu blog hoje e saí pela tangente. Encontrei isto: “Fato interessante sobre a biblioteca da NYU: quem para no último andar (lado Sul) e olha para baixo não mais sente vontade de se matar. Foi propositalmente planejado para reduzir [o número de] suicidas que pulam dali. As pontas das grades de metal de cada andar foram projetadas para parecerem cruzes, enquanto o piso foi projetado para parecerem espigões [coisas pontiagudas, “spikes”] à distância. Foi, é claro, inspirado na obra “Depth” [“Profundidade”], de M.C. Escher.”

(Essa obra “Depth“, que eu não conhecia, deve mesmo ter servido de inspiração para o piso do átrio da biblioteca.)

O comentário spam fez referências muito mais explícitas que as minhas aos suicídios ocorridos na Bobst. Foram três. Os dois primeiros foram em setembro e outubro de 2003. Do terceiro eu me lembro. No dia 3 de novembro de 2009, faltando um mês para o fim do meu primeiro semestre de mestrado, li de boca aberta o e-mail circular do presidente da NYU: “É com grande pesar que devo informá-los da morte de um aluno, esta manhã, na Bobst.”

Em 2012, a NYU encomendou de um estúdio de arquitetura uma reforma para dificultar essas manobras. A solução foi separar as galerias do grande átrio com telas de alumínio perfuradas num padrão que imita uma “chuva de pixels”. O resultado dessa reforma eu ainda não vi (nem, portanto, fotografei); apenas conferi a cobertura feita por um blog do NY Times, que inclui várias fotos. A página do estúdio de arquitetura tem outras fotos, muito boas (é só seguir o caminho Projects > Institutional > Academic > NYU Bobst Library).

Numa rápida googlada, acabei encontrando o texto do comentário spam, nas mesmas palavras, no site New York Architecture, com fotos e textos sobre diversos prédios de NYC.

Como e por que esse comentário spam foi, muito apropriadamente, aparecer no post em que eu comentei sobre as hastes em formato de cruz? Assim surge mais um Bobst Mistery.

2 ideias sobre “De spam à biblioteca ao suicídio à arquitetura

  1. Mateus

    Ah-ha! boa postagem. Gosto de bibliotecas, livrarias e congêneres. Gosto de tudo: desde a casca ao produto. Enfim, satisfeito. 🙂

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    Resposta
  2. Pingback: Tecnologia não se elogia | Martin D. Brauch

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