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O sonho da casa própria

Há muitos edifícios residenciais de alto nível recentemente construídos ou em construção em Porto Alegre. Em muitos deles, as áreas comuns dos condomínios têm piscina interna e aquecida, piscina externa, sala de ginástica, salão de festas, quadra de tênis, sala de jogos, sala de brinquedos. Cada apartamento tem duas ou três lareiras, três ou quatro suítes, quatro ou cinco vagas de garagem. Os jardins são amplos e graciosamente planejados; há vidro em abundância; as vistas são encantadoras, para áreas verdes ou o lago. Não faltam sofisticação, requinte, luxo.

Tudo isso está acessível a toda família trabalhadora que consegue apertar o cinto e economizar.

Numa família de quatro pessoas (mãe e pai economicamente ativos, filha e filho menores), com renda familiar de dois salários mínimos, o planejamento pode ser assim: metade da renda paga a prestação do apartamento, enquanto a outra metade (um salário mínimo inteiro) fica disponível para atender às necessidades vitais básicas da família com moradia (sim, porque enquanto o apartamento não está pago ainda é preciso pagar aluguel), alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.

Trezentos e poucos anos depois, o apartamento estará quitado.

Nesse momento, a filha e o filho já serão economicamente ativos e poderão contribuir com o sustento material da família. Supondo que ganhem um salário mínimo cada e que não se casem nem tenham filhos, as rendas dos dois filhos ajudarão a pagar o que não se quita nem no longo prazo, o que é vitalício, anual, recorrente: as despesas do apartamento (água, luz, gás, seguro, telefonia, conexão de Internet, TV por satélite), o imposto predial, a contribuição condominial.

A renda remanescente poderá enfim bancar o grande sonho da família: uma casa de praia.

A vida após a Índia

Faz quase um terço de ano que assumi o desafio de um emprego novo. Para minha surpresa, um dia desses um casal de amigos próximos ainda achava que eu continuava no trabalho anterior.

Engano perfeitamente compreensível. Foi uma transição inesperada, rápida e discreta.

Na mesma semana em que voltei da Índia, no fim de janeiro, o RH de um grupo de mídia (jornal, rádio, TV e online) encontrou meu perfil no LinkedIn e manifestou interesse em me entrevistar. Eu não tinha muito interesse inicialmente, porque estava em linhas gerais bem satisfeito no meu trabalho e não estava pensando em buscar outras oportunidades. Depois de um pouco de insistência, concordei em participar de uma entrevista, que acabou levando a outras quatro e, no início de março, a uma proposta de emprego que eu não podia deixar de considerar.

Fico impressionado com minha propensão a me encontrar em dilemas que não procurei. Trabalhando por um ano e meio como advogado associado na área contratual de um escritório de advocacia respeitado de Porto Alegre, sentia que vinha crescendo bastante na prática transacional e consultiva. Gostava do trabalho, do clima de trabalho, do chefe, da equipe, das outras equipes. Nada era perfeito (porque nada é), mas eu não estava procurando alternativas. Eis que surgiu uma, e então eu tinha de decidir.

Avaliei cuidadosamente a proposta. Achei que valia investir na mudança (de escritório de advocacia de porte médio a departamento jurídico de sociedade empresária grande), pela experiência de trabalho sob um ângulo inédito, pelas perspectivas de carreira, pelo prazer de trabalhar com comunicação. Fui transparente quanto à proposta a meu chefe à época. Por fim, resolvi sair do escritório — em muito bons termos com o chefe e os demais sócios — e aceitar a proposta.

Impossível saber se foi a melhor decisão, em termos absolutos, e acho que nem cabe tentar chegar a uma conclusão sobre isso. As certezas que tenho hoje são de ter tomado a melhor decisão que poderia tomar naquele momento, de gostar do que faço tanto quanto gostava do que fazia, de continuar crescendo profissionalmente e trabalhando com ética e dedicação.

Arrancar ou não arrancar

Sabe aquelas coisas bem pequenas que podem nos incomodar bem bastante? Uma delas eu tenho visto ao chegar em casa todos os dias, pelo menos ao longo do último mês.

Esse cartazinho petulante aí, afixado no meio da porta de entrada do edifício onde moro, tem tantos problemas de forma e conteúdo que fica difícil saber por qual começar. Então o jeito é começar.

Esteticamente, é horrendo, em todos os aspectos: caligrafia, recorte do papel, uso dos adesivos, escolha do local de afixação.

Socialmente, é grosseiro, para dizer o mínimo (que já inclui “de mau gosto”, na minha definição).

A conduta que o cartazinho parece pretender evitar (cinzas e bitucas de cigarro jogadas pelas janelas, no pátio e nos jardins) é obviamente contrária ao bom senso; os fumantes deveriam abster-se dessa conduta independentemente de aviso.

Porém, em vez de advertir os fumantes das penalidades a que estão sujeitos por causa dessa conduta (o que me pareceria mais adequado), o cartazinho emprega sarcasmo. É óbvio que janelas, pátio e jardins não são cinzeiros; todos os fumantes sabem disso (exceto, talvez, aqueles com distúrbios psiquiátricos gravíssimos).

Com esse sarcasmo, o cartazinho insulta a inteligência de todos os fumantes, tanto dos que descartam adequadamente as cinzas e bitucas quanto dos que as descartam inadequadamente. Ora, o fato de certos fumantes descartarem cinzas e bitucas inadequadamente não autoriza ninguém a insultar sua inteligência.

O cartazinho ainda ofende (não só com o sarcasmo, mas com todos os problemas listados aqui) todos os não fumantes que, para entrar em casa, inevitavelmente têm de passar por ele. Também envergonha todos os moradores, porque as visitas deles, ao entrarem no prédio, também acabam lendo esse cartazinho tosco. Eu, se fosse meu visitante, não teria dúvidas: “é, o Guri mora num cortiço.”

Administrativamente, é inútil. Duvido que algum fumante se sinta incentivado a abandonar ou tenha efetivamente abandonado sua conduta inadequada por causa desse cartazinho.

Ortográfica e gramaticalmente, o cartazinho é… bah, ortográfica e gramaticalmente, ele não é.

Til na letra errada (“atençaõ”, “naõ”, “saõ”). Aquele acento de “pátio” que está mais no “t” do que no “a”. Ponto de exclamação e ponto de interrogação ao final: não há como saber se é um, se é o outro, ou se são ambos. Sujeito separado do predicado por uma seta feiosa. “Atenção”, dois-pontos, “Fumantes”, dois pontos: obviamente, quem escreveu o cartazinho nem sonha em saber o que seja vocativo.

Por fim, temos a “Adm.” (que deve ser sigla para “Administração”) se dizendo “gratos” em vez de “grata”. E se a intenção foi agradecer em nome de todos os moradores (“gratos”), deixo registrado: a Adm. signatária desse cartazinho não me representa. #nãomerepresenta mesmo.

A agressão completa que esse cartazinho me impinge chegou a despertar em mim ímpetos vândalos, que até me envergonham. Pensei seriamente em descer à entrada do prédio numa noite qualquer e, no silêncio do sono dos vizinhos e da Adm., sem correr o risco de ser visto ou ouvido, arrancar o tal do cartazinho.

Mas esse não seria eu. Se não afixei eu o cartazinho, não seria meu o direito de arrancá-lo.

Por outro lado, se não têm bom senso nem os fumantes que jogam cinzas e bitucas pelas janelas e nos pátios e jardins nem a Administração que afixa cartazinhos imbecis, alguém que tem bom senso deveria tomar uma atitude. E se a atitude contra os fumantes transgressores é mais difícil, a atitude contra a Administração parece bem simples: arrancar o cartazinho.

Mas eu não sou polícia estética, social, administrativa, ortográfica ou gramatical. Não arranco.

Se bem que, nesse mundo de comportamentos absurdos, talvez uma polícia dessas viria bem. Arranco.

Ou talvez eu seja dramático e exija muito de mim mesmo, dos outros e do mundo. Talvez mais absurda que os comportamentos do mundo seja minha inquietação extremada por causa daquele cartazinho. Talvez eu simplesmente devesse deixá-lo estar. Não arranco.

Mas talvez, se eu arrancasse o cartazinho, conseguiria, junto com ele, arrancar do mundo um pouquinho do comportamento absurdo que faz faz minha alma doer…

Arranco ou não arranco?

Sete obviedades e uma opinião sobre protestos (em geral e os de 17 de junho de 2013)

A verdade é que eu não queria interromper minha série atual de posts, mas, como o Brasil não fala nem escreve hoje senão sobre os protestos de ontem, eu me sentiria um alienado se ignorasse esse movimento.

Tenho lido muita obviedade por aí, que não vale a pena discutir, mas que as pessoas insistem em discutir. Por isso, resolvi publicar seis proposições óbvias (que eu tomaria como pressupostas) e uma, nem tanto, sobre protestos (em geral e os de ontem, 17 de junho de 2013).

Sem me apoiar em nenhuma autoridade científica, as seguintes proposições são óbvias para mim:

  1. Protestos pacíficos são exercício saudável de democracia; protestos violentos, não.
  2. O Poder Público não deve conter protestos pacíficos (muito menos com violência).
  3. Manifestantes pacíficos não devem ser responsabilizados pelos atos dos violentos.
  4. O Poder Público deve conter protestos que causem danos pessoais ou patrimoniais.
  5. Não faltam motivos para insatisfação e protesto popular no Brasil, desde o Império.
  6. Um protesto (pacífico ou violento) pode desencadear transformação social.
  7. Pode haver percepções diferentes (e igualmente válidas) sobre um mesmo protesto.
Já o seguinte ponto não é tão óbvio:
  • Protesto sem estratégia tem pouca ou nenhuma força argumentativa.

Casualmente, ontem mesmo (antes dos protestos) li um artigo sobre negociação escrito por Adam M. Grant. O autor menciona a conclusão de Neil Rackham e John Carlisle de que um negociador experiente dá, em média, menos razões para seus argumentos que um negociador inexperiente. Traduzo livremente do artigo que li o seguinte trecho (onde o autor se referia a uma “oferta inicial” de uma negociação, tomei a liberdade de traduzir genericamente, por “argumento”):

“Quanto mais razões são indicadas, mais um argumento é potencialmente diluído,” escreve Rackham. “Se um negociador dá cinco razões para servir de fundamento ao seu argumento e a terceira razão é fraca, a parte oposta, em sua resposta, explorará essa terceira razão.” Apresentar razões em número excessivo também pode transmitir falta de [auto]confiança, tornando claro que não estamos certos da legitimidade do nosso argumento. A melhor fundamentação de um argumento eficaz consiste em uma ou duas razões convincentes.

O trecho acima tem um paralelo evidente com os episódios de ontem. Foram tantos os motivos dos protestos (nem vou tentar enumerá-los) que cada um deles ficou diluído em sua força argumentativa. Por mais nobres que sejam as causas defendidas, os críticos dos manifestantes tendem a desprezar as causas menos consistentemente fundamentadas, a falta de alvo certo ou estratégia, ou o protesto como um todo. O protesto que consiste em disparar tiros para todos os lados (com o perdão da metáfora violenta!) dá a impressão, ainda que equivocada, de que os manifestantes não sabem contra que protestam. Parece difícil um protesto sem estratégia ou com aparência de não ter estratégia surtir o efeito desejado.

Reclamar: vício ou virtude? (5) Não conclusão

Depois de quase cinco meses sem postar, venho aqui não concluir a série que comecei a escrever. Assumo a vergonha, mas me justifico (como é típico): inicialmente tive de suspender a série (por sei lá qual motivo) e depois simplesmente perdi o embalo. A estas alturas, não vale mais a pena vencer a inércia, porque as ideias que eu tinha para a série se perderam nos mistérios da sinapse ou passaram do prazo de validade. A série não tinha número pré-determinado de posts, mas vamos dizer, então, que teve quatro – ou cinco, contando esta não conclusão. E pronto.

Reclamar: vício ou virtude? (4) Ou ambos?

Uma de minhas mais trabalhosas e desafiantes atividades no escritório é aconselhar e auxiliar clientes estrangeiros na aquisição de imóveis rurais na Faixa de Fronteira – aquela faixa de 150 Km ao longo das fronteiras terrestres do Brasil. Antes de adquirir um imóvel na Faixa de Fronteira, o estrangeiro deve obter autorizações do Incra, do Conselho de Defesa Nacional e, em alguns casos, até do Congresso Nacional.

Os procedimentos para obter essas autorizações exigem um número significativo de documentos. Por exemplo, o estrangeiro precisa demonstrar que, com a aquisição dos imóveis, não se excederá o “limite de estrangeirização” do município onde se situam. A regra é que estrangeiros não podem ser donos de mais de 25% da área de um município; além disso, estrangeiros de mesma nacionalidade não podem ser donos de mais de 10% da área total do município.

Parece complicado, mas a mesma lei que criou essa regra passou a exigir dos Registros de Imóveis um “livro auxiliar” para registrar todas as aquisições de imóveis rurais por estrangeiros. Assim, o Registro tem condições de emitir certidão que indique a área rural total pertencente a estrangeiros naquele município e a discriminação dessa área por grupos de nacionalidade. Mais que isso, a requerimento de qualquer interessado, o Registro deve emitir essa certidão. É sua obrigação.

Em tese, tudo lógico, perfeito, funcional. Na prática… (Se todas as leis fossem cumpridas no Brasil, viveríamos num país muito melhor, sem necessidade de tantos advogados. Ou seja, num país melhor ainda.)

Na prática, há Registros de Imóveis que não mantêm atualizados os seus “livros auxiliares”, deixando de registrar neles as vendas de imóveis rurais a estrangeiros. Assim, as certidões que emitem com base nesses livros não corresondem à realidade.

Além disso, há o problema deixado pela onda de emancipações. Fica mais fácil explicar com um exemplo. Imagine o município hipotético de Budapeste, que em 1990 dividiu-se nos municípios de Buda e Peste. Apesar da divisão, subsistiu apenas um Registro de Imóveis em Buda, com abrangência sobre Buda e Peste. O Registro não atualizou seus livros (inclusive o “livro auxiliar”) após a divisão e não tem condições de informar quais áreas pertencentes a estrangeiros estão localizadas em Buda e quais estão localizadas em Peste. Tem o dever legal de informar, mas não informa. Para isso, o registrador deveria dar-se o trabalho de localizar quais áreas estão em Buda e quais estão em Peste.

Por um lado, as certidões emitidas por esses Registros de Imóveis quanto ao nível de estrangeirização do município são sabidamente incorretas. Por outro, as certidões têm fé pública – ou seja, o conteúdo delas presume-se verdadeiro.

Voltando aos procedimentos que conduzimos para os clientes, solicitamos em nome deles as certidões necessárias aos Registros. Sabemos que as certidões emitidas não correspondem à realidade. Os clientes também. Os registradores também. O Incra também – e reclamou. Solicitou que obtivéssemos certidões corretas.

Como solicitar aos Registros, “por favor, cumpram seu dever legal e emitam certidões que estejam atualizadas e cujo conteúdo corresponda à realidade”? Não sei, mas foi o que fizemos – polidamente solicitamos novamente aos Registros que fizessem de novo o que já tinham feito.

A resposta que esperamos é que os Registros atualizem seus “livros auxiliares” e emitam certidões corretas e atualizadas. Isso resolveria todos os nossos problemas – meus, do escritório, do cliente, do Incra. E todos se regozijariam.

Mas outra resposta plausível seria: “as certidões que emitimos estão atualizadas e correspondem à realidade”; ou seja, um carimbo de autenticidade em algo sabidamente falso. E o que fazer nesse caso?

Poderíamos argumentar ao Incra que, mesmo após nossa insistência, os Registros insistem no erro – mas isso não resolveria o problema, porque continuaríamos sem as certidões necessárias. Poderíamos reclamar à Corregedoria-Geral de Justiça gaúcha, para que compelisse o Registro a cumprir seu dever legal – e assim começaríamos uma bela inimizade com os registradores, de cujos serviços tanto necessitamos.

Nesse caso, reclamar é o correto e, ao mesmo tempo, um tiro no pé.

Advento branco

Acordei hoje de madrugada com muita sede. Fui à cozinha e, ao beber um copo d’água, espiei pela janela. Uma camada de branco sobre o parapeito me surpreendeu. Neve? Em Porto Alegre? Em dezembro?

Corri para pegar o celular para registrar em foto e enviar para toda a família e para os amigos e postar no Twitter e no blog para compartilhar com o mundo todo (e talvez ser o primeiro a fazê-lo) esse evento espetacular: neve em Porto Alegre em dezembro!

De celular na mão, voltei à cozinha e abri a janela para tirar a foto – ou, antes, para ver se me convencia de que aquilo não podia ser verdade. Mas ao abrir a janela confirmei que era mesmo neve o que eu tinha visto sobre o parapeito. Senti um vento gelado entrar no apartamento. E vi claramente que flocos brancos finíssimos ainda caíam do céu.

Nisso, acordei num susto, pulando da cama. Rápido! A câmera! Demorou uns instantinhos para acordar de verdade. É claro que não estava nevando em Porto Alegre em dezembro. Tinha sido um sonho.

Peguei o celular: 6h da manhã. E apareceu uma notificação de um e-mail enviado pela minha irmã Ca, na Alemanha, recém recebido. Começava assim: “Quando a persiana abriu, Isabel e Felipe [meus sobrinhos gêmeos, de 2 anos] apontaram e disseram: NEVE!”

Reclamar: vício ou virtude? (3) O discurso de formatura

Recentemente assisti ao vídeo da minha formatura de Ensino Médio, que meu pai resolveu converter de VHS para DVD. Quase uma década depois, foi legal rever os colegas, de muitos dos quais tenho saudade, e também meu desempenho como orador da turma.

A íntegra do discurso está aqui.

Muitos colegas gostaram do discurso e disseram que foi pró-discente. Muitos professores gostaram e disseram que foi pró-docente. E eu, que pretendia apenas fazer um discurso decente, fiquei surpreso com essas reações, que parecem irreconciliáveis, presumindo-se algum nível de antagonismo entre professores grevistas e alunos que acabaram por formar-se meio ano após o previsto por causa das greves.

Talvez eu tenha tido sucesso em alcançar públicos diferentes com a mesma mensagem… pode até ser. Mas prefiro acreditar que o polêmico discurso de formatura que fiz é a mais contundente prova de que as pessoas ouvem o que querem. O emissor não tem controle algum sobre a interpretação da mensagem pelo receptor. Se o receptor estiver, por qualquer motivo, predisposto a interpretar a mensagem como uma ofensa, é o que fará – ainda que a intenção do emissor era de que fosse um elogio. E vice versa.

Simplesmente, acho que muitos, tanto professores quanto alunos, estavam predispostos a gostar do discurso. E por isso gostaram. Certamente houve também quem não tenha gostado, mas esses não tiveram a dignidade de me procurar na saída para reclamar.

E lembrando que o tema desta série de posts é reclamar, fato é que meu discurso (independentemente de ser pró-qualquer coisa) incluiu aspectos de reclamação. Não consistiu unicamente de reclamação, porque procurei fazer um retrato equilibrado da Escola à época, elogiando o que conviesse elogiar e reclamando do que conviesse reclamar. A reclamação (aliás, assim como o elogio) não era nem mal nem bem-intencionada: era apenas um retrato – subjetivo, é claro, porque o fotógrafo escolhe o ângulo, a lente, o filtro…

Outro fato é que o aspecto reclamação do discurso desencadeou outra reclamação. Ao assistir ao vídeo do discurso recentemente, revi o então Diretor da Escola, ao encerrar a cerimônia de formatura, resgatar no improviso o meu discurso e endossar os problemas dos quais eu tinha reclamado. Um discurso com um elemento de reclamação gerou outro com elementos de desabafo e apelo por mudança.

Difícil avaliar se a mudança aconteceu. Difícil avaliar se, tendo acontecido, teria acontecido em virtude de qualquer dos discursos – e em que proporção. Afinal, mudanças podem depender de muitos fatores além da percepção do problema e da necessidade de mudança. Mesmo assim, acho que o discurso (com elemento de reclamação) contribuiu para difundir essa percepção.

* * * * *

Este post começou com uma parte nitidamente “reclamar: virtude” e vai encerrar com uma parte deliberadamente “reclamar: vício”.

Como bom nerd, curto estatísticas. De todo tipo. Melhor nem listar para não me empolgar! Vou direto ao específico: curto particularmente as estatísticas de visitação de páginas do Blog do Guri, que o Blogger gera desde julho de 2008.

Por exemplo: estatísticas de ontem, 22/11/2012. O post novo do dia (Reclamar: vício ou virtude? (2)) foi visitado 15 vezes e o de anteontem (Reclamar: vício ou virtude? (1)), 07. Mas o mais visitado, com 25 visitas (mais que os outros dois posts somados!), foi um velho post de 08/05/2006: O polêmico discurso de formatura.

Estranho? A explicação que tenho é que, em novembro, com a época de formaturas chegando, os oradores e potenciais oradores andam procurando na Internet inspiração para seus discursos. Plausível?

Considerando os últimos 30 dias, o post mais visitado é Apenas uma escolha, de 20/11/2012, com 31 visitas. Isto é, esse é o segundo mais visitado, porque o mais visitado é O polêmico discurso de formatura, com nada menos que seis vezes mais visitas: 197.

Considerando o período total para o qual o Blogger gera estatísticas, O polêmico discurso de formatura vem em primeiro lugar, com 5.560 visitas. Em segundo lugar, bastante depois, vem o misterioso “Já estou melhor, obrigada”, com 368 comentários (menos de um décimo do número de visitas do mais visitado).

Isso me irrita profundamente, porque um post específico tem envenenado minhas queridas estatísticas. Há muito tenho pensado em reclamar (no blog) sobre isso.

Quando resolvi fazê-lo, aproveitando esta série de reclamações, percebi que essa reclamação é autoboicotante. Com esta reclamação sobre o discurso, comentando sobre ele, citando o post original com sua íntegra e incluindo as palavras-chave “discurso de formatura” no título do post, acabarei fazendo com que o blog atraia ainda mais visitas de oradores em busca (no Google) de inspiração.

O post de hoje servirá para testar estatisticamente a hipótese de que reclamar sobre um post cujos efeitos me dão vontade de reclamar só agravará a situação, dando-me vontade de reclamar ainda mais.

Reclamar: vício ou virtude? (2)

Saiu em uma edição do Diário Oficial da União uma publicação relevante quanto a um cliente do escritório. Tendo de apresentar a página dessa publicação à Junta Comercial gaúcha, fizemos o que normalmente se faz: imprimimos a página a partir do site da Imprensa Nacional. Cada página do Diário Oficial assim obtida vem com um código único, que permite a verificação da autenticidade.

Essa assinatura digital existe por força de lei (na verdade, da Medida Provisória, número 2.200-2 de 24/08/2001) e é amplamente usada e aceita. A Imprensa Nacional adverte: as publicações oficiais desde 1990 estão disponíveis no site, com certificação digital.

Porém, para nossa surpresa, a Junta Comercial inflexivelmente recusou o documento e exigiu original ou cópia autenticada do Diário Oficial impresso. “Queremos uma folha de papel jornal.” Solicitamos uma cópia autenticada da página relevante à Imprensa Nacional em Brasília: para nossa ainda maior surpresa (preconceito?!), foi fácil, ágil e barato.

Porém, para nossa enorme suspresa, a Imprensa Nacional nos enviou a mesma página que tínhamos imprimido originalmente a partir do site, mas com um simplório carimbo da Imprensa Nacional (“confere com o original”, ou algo assim) e a rubrica de um servidor público, sem reconhecimento de firma.

Esse carimbo e essa rubrica sem reconhecimento de firma pouco acrescentaram à autenticidade ou mesmo à aparência de autenticidade da (já suficientemente autêntica) página com autenticação digital. Mas era o tudo o que a Imprensa Nacional tinha a oferecer. “Não enviamos folha em papel jornal.” E foi o que apresentamos à Junta Comercial.

Porém, para nossa estapafurdiamente gigante surpresa (e com um tantinho de alegria pelo nosso cliente), a Junta Comercial aceitou aquilo que era uma folha impressa do site mais carimbo e rubrica.

Nessa história, talvez o mais irritante seja a recusa inicial da Junta em reconhecer autenticidade a um documento de autenticidade óbvia, legalmente exigível e amplamente aceita. Ou talvez seja o reconhecimento final, pela Junta, da autenticidade do segundo documento apresentado, pretensamente mais autêntico que o primeiro, mas, na verdade, igualmente autêntico. Ou talvez seja, simplesmente, a inconsistência e a arbitrariedade da Junta.

De qualquer forma, problema resolvido. Mas neste caso, desta vez. Sem termos manifestado nossa insatisfação com a recusa inicial indevida, não temos como garantir que a Junta se abstenha de repetir essa recusa indevida futuramente. Sem termos reclamado, só nos resta torcer que o absurdo não se repita.

Reclamar: vício ou virtude? (1)

Um dia desses, minha amiga gaúcho-candanga Carol Grassi reclamou em forma de pergunta antropológica: “Por que gaúcho gosta tanto de reclamar?” E eu reclamei da premissa dela: “Não sei se gaúcho gosta mesmo de reclamar.” Obviamente só o fiz porque, como bom gaúcho, tive de reclamar. É claro que gaúcho gosta de reclamar.

Outro dia desses, conversava com meus amigos Karina e Felipe Soares sobre as reclamações nossas de cada dia. (E eles são pessoas bem entendidas no assunto, não porque sejam reclamadores de primeira, mas porque, como servidores da Justiça do Trabalho, lidam direto com reclamantes, reclamadas, reclamatórias.)

Nesse contexto, o Felipe comentou sobre um atendimento ruim que recebeu recentemente e que, ao reclamar por escrito desse atendimento, inspirou-se em como eu me indignava com as coisas reclamáveis, e reclamava delas, já no início da faculdade de Direito. “Chutava o balde,” disse ele como diria eu então.

“Mas eu nem reclamava tanto assim no início da faculdade”, reclamei eu. “Capaz que não!”, ele reclamou. “E o artigo aquele sobre as avaliações inconsistentes, que escreveste já no primeiro ano?”

Bah. Faz nove anos. Nem me lembrava. Mas é mesmo: eu já reclamava bastante. Bem mais que hoje, aliás. Não que hoje tenha menos motivos. Na melhor das hipóteses, tenho dez vezes mais.

Por isso resolvi escrever uma série de posts reclamando sobre reflexões — quer dizer, refletindo sobre reclamações. Gaúchos ou não, servidores da Justiça do Trabalho ou não, estudantes do primeiro ano da faculdade ou não, todos temos as reclamações nossas de cada dia. Reclamar é vício ou virtude? Às vezes é melhor silenciar que reclamar, mas outras vezes reclamar pode até ser necessário.

Mas basta — não quero e não vou entregar já neste primeiro post nenhuma conclusão precipitada sobre um assunto que ainda nem desenvolvi nem exemplifiquei propriamente. Sem mais, o resto ficará para os próximos posts desta série. Não adianta reclamar.